Caderno de Resumos: Estudos Literários



Universidade Federal do Paraná
Setor de Ciências Humanas e Letras
Coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras



Caderno de Resumos


ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: ESTUDOS LITERÁRIOS






Mesas Redondas


TRADUZIR OS CANTOS: A PERFORMANCE VOCAL

 

Participantes:

Fernando Villatore (mestrado)

Luciane Alves (mestrado)

Raphael Pappa Lautenschlager (doutorado)

Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves

 

Mediação: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores


Resumos:

THE DOORS: ANTOLOGIZAR E/É PERFORMAR

 

Fernando Villatore


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: Tradução. Música. Canção. Performance. Oralidade.

Happiness is a warm gun.
(Lennon / McCartney)

O registro de uma canção, isto é, sua gravação, não faz dessa performance uma coisa estanque. Se a performance, etimologicamente, remete à “forma final” que se objetiva a cada caso, essa forma só durará enquanto dure a performance, o movimento. A performance, portanto, só existiria em movimento. A performance seria, parodiando a famosa canção, uma warm gun. Ela não é, pois, um ato objetivo, não existe como um todo, e se dará a cada vista, a cada leitura, a cada audição, estando, necessariamente, sempre em movimento. A performance do registro de uma canção não é, segundo uma visão derridiana, igual a si mesma. Assim, se a gravação de uma canção é o registro de uma de suas performances possíveis, ela admitirá tantas performances quantas forem as suas audições, com receptores, estados de espírito e condições histórico-sociais variadas. Do mesmo modo, sempre que uma canção é registrada, ela carrega já o peso criativo e constitutivo de todas as suas performances (ou sua carência), o que a dimensiona e redimensiona em constantes movimentos de construção, agregação e desconstrução. No caso da banda californiana The Doors, o caráter performativo de suas composições e gravações sempre foi definidor e redefinidor da personalidade artística da banda, não só por suas apresentações inusitadas e polêmicas, como pelo efeito que a busca por performar sempre perto dos limites da improvisação e oralidade acabou tendo no registro em estúdio da música do grupo. A canção “The end” é um ótimo exemplo disso, tendo tomado novas proporções a partir de cada nova apresentação até seu registro em mais de dez minutos de uma performance de gravação que, se remete inevitavelmente ao propósito inicial de uma canção de amor quebrado, distancia-se disso na mesma medida em que abre inúmeras possibilidades dialógicas e polifonia em sua interpretação. Importante lembrar o papel que sua utilização no clássico cinematográfico Apocalipse Now, de Francis Ford Copolla, teve na recepção de suas performances posteriores, desconstruindo-a e redimensionando-a a partir de nova abordagem. Para aqueles que viram o filme, impossível não ouvir a canção com novos ouvidos filtrados necessariamente por essa experiência.
Ressalta-se, além disso, o papel que a oralidade representa no trabalho da banda, tendo seus laços reforçados pela intrínseca relação que se estabelece entre oralidade, contrária à simples verbalização da escrita, e performance. Segundo Ruth Finnegan (Oral Poetry, Its nature, significance and social context, 1992), a oralidade de um poema pode residir, entre outras coisas, na ligação verificada na maneira como é performado. Segundo a autora, a poesia oral, mesmo que possua um texto, deve ser performada para atingir sua completude. Seguindo esse ponto de vista, a letra de uma canção só atingirá sua integralidade juntamente com a performance da canção. Se for performada de maneira diversa, por outra pessoa, em outro momento, ou para públicos diferentes, ainda segundo o pensamento de Finnegan, será uma canção diferente.
Dito isso, e encarando-se a tradução também como um ato performativo capaz de agir no centro da cultura e suas visões, chega-se aqui ao propósito inicial deste trabalho: antologizar, traduzir e (re)performar canções do The Doors, com um olho no que elas podem significar e acrescentar ao presente histórico do tradutor, e outro em sua relação com o passado e sua recepção ao longo dos anos até hoje. A canção aqui escolhida, apenas a título de demonstração dentro do espaço que nos cabe, faz parte do último disco da banda, LA Woman (1971), e chama-se “Been down so long”. Talvez seja um bom exemplo do tipo de desafio que se estabelece ao se traduzir canções: além de todas as questões de ritmo (ritmo aqui entendido não como repetição, mas como fluxo, como fundamento que organiza o discurso, presente no registro de linguagem, na escolha vocabular, nas contrações, nas oralizações, na sintaxe, etc., assim como definido por Henry Meschonnic em Critique du rythme [1982] e Poética do traduzir [2010]), métrica e significação envolvidas na tradução, atributos que na letra de uma canção a fazem ser relativamente equivalente a um poema, temos ainda a significação ou ressignificação que esta toma em conjunção com a música, o que faria letra e música interdependentes em suas significações, com possível subalternidade de um dos dois lados, sobre o que diversos autores (não é o caso citá-los aqui por questões de espaço e por não ser o tema específico deste resumo) tendem a divergir anos últimos anos. O “modo de significar”, termo cunhado por Meschonnic para referir-se ao ritmo de um texto, é pois ressignificado no caso da letra em relação à maneira como a música se apresenta, e vice-versa. No caso da canção, portanto, sem perder de vista discurso e significação do original, tem-se a necessidade de encaixar a letra na métrica, estilo e ritmo (aqui sim entendido como repetição, ordenação, concatenação) da música para que possa ser vocalizada, além de fazê-la consonar, particularmente na visão deste trabalho, com a releitura musical efetuada. Por outro lado, seguindo Haroldo de Campos no artigo “Da tradução como criação e como crítica” (Transcriação, 2013) – que nesse caso corrobora a versão derridiana de que o texto não apresenta sentido finalizado, isto é, só se dá plenamente em sua interpretação, de modo que não existiria texto original –, segundo o qual a tradução pode e deve operar uma “rasura” do original, recriando-o, “transcriando-o”, não se estabelece neste trabalho compromisso de “fidelidade” à canção original, mas antes o intuito de recriá-la, ressignificá-la de acordo com as necessidades impostas não só pelo tradutor mas pelas próprias exigências que a obra artística estabelece ao ser reconstruída, reinterpretada enquanto intervenção estética única, que transcende a semântica, ainda segundo Haroldo de Campos, não admitindo decodificação e exigindo, assim, nova intervenção estética que a redefina em relação ao original em seu processo tradutório. A solução inicial encontrada é o foco deste seminário e será apresentada no momento oportuno em versão musicada em português para demonstração e debate dos resultados.


NINA SIMONE: A CANTORA COMO AUTORA, A TRADUTORA COMO INTÉRPRETE

 

Luciane Alves Ferreira Mendes


Linha de pesquisa: Alteridade, Mobilidade e Tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: Tradução. Performance. Canção. Nina Simone.

A tradução de canção, área pouco pensada e explorada como fazer literário, quando encarada como performance (ZUMTHOR, 2014) abre possibilidades de teorizar e criticar os limites do fazer literário para além do objeto livro, um modo de se fazer que transcende as plataformas canônicas de divulgação e que carrega a letra de vocalidade (ZUMTHOR, 2014), de corpo, de presença (GUMBRECHT, 2010).
Nesse viés de abordagem, proponho uma tradução vocalizada da canção Obeah Woman, tendo como ponto de partida a performance de Nina Simone, de 1974, na qual a jazzista norte-americana incorpora e reinterpreta essa canção, alegadamente de autoria do bahamense Tony Mckay, ou Exuma. A Mulher Vodu que se inscreve na letra performada por Nina dialoga em muitos aspectos com o Homem Vodu de Exuma, mas demarca suas peculiaridades em relação a ele.
Importa-me questionar o lugar político de autora (FELSKI, 2003) que Nina Simone assume ao performar, a partir da composição de Exuma, uma outra letra, outro arranjo, outra interpretação. Como seria possível ela ser o mesmo Exuma se seus sujeitos habitam lugares tão singulares no mundo, se a linguagem reduz por definição suas pessoas a gêneros?
Ao performar Obeah/Vodu, a cantora Nina Simone vira um outro? Que outro? Na canção ela se canta “They call me Nina and pisces too”, “the Obeah Woman beneath the seas”, levando em conta a trajetória de vida nesse mundo tanto de Eunice Kathleen Waymon, o sujeito empírico nascido em peixes, quanto da figura de “diva” que o simples nome Nina já carrega. Em meu projeto de tradução, procuro também problematizar essa imagem da “diva” enquanto um encarceramento e uma representação (CHARTIER, 1990) que apaga o sujeito empírico e político, tornando-o apenas um meio para reprodução da arte alheia ao próprio sujeito. A meu ver, Nina rompe com essa imagem, tanto ao se afirmar negra em pleno período de luta pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, quanto por praticar, via corpo, uma representação de feminismo negro ainda pouco discutida. Em sua performance, ela vai além do nome e também se proclama “I can eat the thunder and drink the rain/ I kiss the moon and hug the sun” em um ato de ser mais que a alcunha que lhe deram, mais que o ser-aí no mundo.
Em tradução, algumas soluções são viáveis para essa performance. Escrita, a letra já é carregada de oralidade, mas precisa ser vocalizada e relacionada aos instrumentos percussivos que acompanham sua fala, estabelecendo o transe e ampliando os significados que a letra da música, caso lida sem esse outro suporte, não corporifica. Por isso, em muitos momentos da minha proposta tradutória, a fidelidade é bastante relacional à corporeidade que carrego, fugindo de um ritmo fechado – já que esse é também dissolvido e ressignificado pelo corpo de Nina em relação à performance de Exuma –, bem como de uma busca de sentido presa apenas à letra escrita. As questões que me atravessam são também de outra ordem, as quais tento elucidar.
Nesse umbral expandido, espaço/tempo em que se dá tal performance, as noções de sujeito e de gênero são relevantes no nível estético, político e ético? E as definições de autoria? Em outra perspectiva, o encontro – presente na resistência perfomadora de se dizer Obeah/Vodu – e a identificação da jazzista negra com o artista marginal negro seriam marcados por essa palavra (Obeah/Vodu) sem gênero, carregada de história e de pré-conceitos? A performance de Nina conduziria a uma subversão da identidade (BUTLER, 2015), da negritude, da linguagem? Por fim, ou de saída, a tradução que proponho dessa canção deve ser apenas mais uma relação (BERMAN, 2013) de leitura de todas essas questões ou se abre, na performance que faço, a outros níveis de relevâncias (DERRIDA, 2000) desse objeto?


UM FRAGMENTO DE PÍNDARO, UM CANTO HOMOERÓTICO PERDIDO.

 

 Raphael Pappa Lautenschlager


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: Tradução. Performance. Píndaro. Poesia lírica arcaica grega.

A proposta de uma tradução poética do Fragmento 123 de Píndaro (c. 520 a.C. – c. 446 a.C.) surgiu a partir de meu interesse na tradução de lírica arcaica grega de temática homoerótica, precisamente meu objeto de estudo no Doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras desta UFPR. A presente tradução foi composta dando ênfase à métrica e à sonoridade do poema, e também ao que elas e outros elementos podem indicar sobre o ritmo da composição. O exercício tradutório inclui a composição de uma performance poética, em grego e em tradução, através da vocalização dos versos do Píndaro e dos da tradução, com acompanhamento musical de lira. Para tanto, busco criar uma melodia que possibilite a vocalização dos poemas nas duas línguas, emprestando-lhes meu corpo e um acompanhamento musical através dos quais eles possam voltar a funcionar (ou possam funcionar pela primeira vez, no caso da tradução) no presente sob a forma de composições orais, ou seja, não apenas como dois textos escritos, a serem lidos silenciosa e individualmente. Esse esforço funda-se na compreensão do caráter performático da poesia lírica arcaica grega, composta num mundo da oralidade, que pode ser compreendido a partir dos estudos de Paul Zumthor em Introdução à poesia oral (2010) e Performance, recepção e leitura (2014) e de Rosalind Thomas em Letramento e oralidade na Grécia antiga (2005). As composições pindáricas que conhecemos atualmente podem ser constituídas de uma simples estrofe (que pode ou não ser repetida) ou então adotar uma forma mais complexa: as tríades, grupos de versos que compreendiam uma estrofe, uma antístrofe (que continham rigorosamente o mesmo esquema métrico) e um epodo (com um esquema métrico padrão, embora diferente do das estrofes e antístrofes). Essas tríades podiam ser únicas ou repetir-se um número variável de vezes, ainda que nas composições conhecidas predomine o esquema de três a cinco tríades, com a notória exceção da Pítica 4, composta de treze tríades, que totalizam 299 versos. O fragmento 123, no estado que conhecemos, estrutura-se em uma só tríade: estrofe (versos 1-5), antístrofe (versos 6-10) e epodo (versos 11-15). A partir dessa divisão em três partes, é possível pensar que no poema as idéias se esquematizam da seguinte forma: 1) uma afirmação geral, na qual o eu-poético diz que devemos colher os amores em tempo, como se ele afirmasse que todos nós estamos sujeitos aos amores e devemos saber aproveitá-los na época adequada; 2) a apresentação das exceções, as pessoas que não estão sujeitas aos amores, e que são, basicamente: quem tem o coração gélido; quem só pensa em riquezas e, por isso, trabalha excessivamente; e quem se faz escravo de fúrias feminis, ou seja, três figuras vistas de forma negativa, considerando os valores da aristocracia grega arcaica; 3) o eu-poético coloca-se entre os que sabem colher os amores em tempo, pois afirma que, por causa de Afrodite, derrete como cera de abelhas sacras sob o sol quando vê o filhos de Agesilau, Teóxeno, o laudandus no poema, como a nos informar que ele sabe colher em tempo os amores. Como a tradução constrói-se a partir do ritmo e considerando a estrutura triádica do encômio, proponho a utilização de uma mesma melodia a ser composta para a estrofe e a antístrofe, e de uma outra melodia diferente a ser composta para o epodo, expediente através do qual pretendo evidenciar que essa similaridade rítmica estava presente no poema grego (mesmo ritmo na estrofe e antístrofe e ritmo diferente no epodo), e tentar fazer com que essa característica não passe desapercebida dos ouvintes e espectadores, ao contrário do que ocorre com a experiência de leitura das traduções em verso livre do poema. A tradução também problematiza o gênero poético no qual se convencionou classificar o Fragmento 123, o dos encômios (que engloba os poemas compostos com o propósito de elogiar alguém ou alguma coisa, louvando os feitos e as qualidades do elogiado). O estudo do poema e sua tradução lançam questionamentos sobre a maneira como funcionava esse elogio na época da composição, e sobre como poderia ser adequado fazer o elogio público (eis que o poema destinava-se à performance pública) do filho de um soberano a partir do louvor da beleza do rapaz e da afirmação do desejo por ele, por parte do eu-poético e de todas as pessoas, exceto as reprováveis exceções listadas na parte central do poema. Essa primeira e experimental performance pública do Fragmento 123 visa testar a tradução e aferir o sucesso e as falhas da recriação poética através das reações que ela gerar na audiência, bem como possibilitar a experiência de se ouvir o texto pindárico e a possibilidade do reconhecimento do ritmo do texto. Além disso, com essa primeira performance pública e com outras posteriores deste e de outros poemas, pretendo problematizar a relação performativa do próprio gênero sexual hoje e ontem, conforme as concepções que Judith Butler demonstra em Problemas de gênero, feminismo e subversão da identidade (2003), ao desenvolver a noção de performativo de John L. Austin contida em Quando dizer é fazer: palavras e ação (1990). Tendo esses questionamentos em mente, o estudo da poesia lírica arcaica grega de temática homoerótica, considerando o ângulo privilegiado de crítica textual que é o fazer tradutório, pretende viabilizar a investigação da homoerotismo e, indiretamente, de algumas experiências e práticas da sexualidade na Grécia arcaica, tendo por base um viés literário e performativo. Também é possível indagar algumas experiências e práticas homoeróticas hoje, e repensar como essas experiências e práticas podem ser reinseridas nas traduções dos poemas, marcando nelas o homoerotismo presente nos originais, em resposta a esforços constantes de seu apagamento, na história das traduções e nos comentários aos poemas da lírica arcaica grega. Esse apagamento deliberado tem sido objeto de lúcidas críticas atualmente em estudos como, por exemplo, Requeering Sappho (Haselswerdt, 2016), que consideram como ele acontece sobretudo em poetas que gozam de elevado conceito crítico, como Píndaro e Safo, e também como ele foi lenta e fortemente construído pela crítica literária há milênios e continua sendo reforçado. Por fim, cabe destacar que o trabalho incorpora discussões recentes acerca de tradução a partir dos estudos e da experiência com os textos, o ritmo e a musicalidade da poesia, principalmente por conta de minha experiência no projeto de tradução coletiva Pecora Loca, formando na UFPR em 2015, que compreende estudos de tradução performática, reescrita, adaptação e tradução da literatura greco-romana e de outras origens no contexto brasileiro. Como já afirmado acima, para o Fragmento 123, o texto grego utilizado é o de Snell e Maehler, e inúmeras dúvidas foram aclaradas com as traduções de Alfonso Ortega (PINDARO, 2002) para o espanhol e de William H. Race (PINDAR, 1997) para o inglês, bem como com o léxico pindárico de Slater.

RITMOS DA TRADUÇÃO

 

Participantes:

André Mendes Kangussu (mestrado)

Francisco Assis De Matteu Monteiro (mestrado)

Rodolfo Jaruga (mestrado).

 

Mediação: Prof. Dr. Rodrigo Gonçalves


Resumos:

TRADUZIR WORDSWORTH: A IMITAÇÃO DE UMA FALA

 

André Kangussu


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: William Wordsworth, Soneto, Tradução

A dissertação consiste em uma tradução comentada dos dois primeiros Livros de The Prelude, poema de William Wordsworth (1770 - 1850). Trata-se do poema mais longo do poeta, compondo-se de catorze Livros. Não tendo sido publicado em vida, o poema existe em três versões. A primeira, uma espécie de “proto-Prelúdio”, constava apenas de seus dois primeiros livros, e foi concebida em 1798, ano da publicação de Lyrical Ballads, que foi revolucionária coleção de estreia do poeta, livro que a recepção ainda hoje elege como marco inaugural de uma sensibilidade romântica na língua inglesa. The Prelude traz em comum com esse Wordsworth mais conhecido, o das baladas, o projeto modernizante de assemelhar a linguagem lírica à linguagem popular e também um certo espírito de jovialidade intrépida. Ao mesmo tempo o Wordsworth de The Prelude é outro: é o do decassílabo sem rima, é o poeta errante, dos rios e árvores robustas, das paisagens mais amplas e mais selvagens; este se opõe ao Wordsworth das baladas, mais paisagístico, menos confessional, dos versos de oito, seis ou quatro sílabas, o dos daffodils.
O ano de 1798 inaugura também, na vida do autor, um período de recolhimento da vida social que duraria até sua morte. Os sete anos seguintes são os mais decisivos na composição dO Prelúdio, cuja segunda versão, de 1805, teria chegado ao décimo terceiro livro. Essa ampliação do poema aproximou-o à estrutura de um longo épico. Os dois cantos iniciais tornam-se então prelúdio de uma narrativa sobre sua própria vida, em que os episódios passam pela infância no idílico Lake District, a educação elementar, a passagem por Cambridge, os passeios errantes pela Inglaterra rural ou selvagem, a viagem à França, a impressão pessoal Revolução Francesa, do qual se segue um desencantamento e um desejo de recolhimento social.
O poema foi traduzido integralmente para o português uma única vez, por meio da portuguesa Maria de Lourdes Guimarães (O Prelúdio, ed. Relógio d’Água, Lisboa, 2010). O maior mérito de sua tradução, assim avalio, é a eficiência com que a tradutora adapta o conteúdo semântico, resultando um texto em cuja trama nós, leitores, confortavelmente assimilamos o total da informação narrativa e filosófica e no qual podemos acompanhar o modo de condução de um pensar e sentir que o poeta mantém continuamente aceso por meio de longos períodos. A principal deficiência dessa tradução, creio, é não reproduzir a tessitura incansável do metro com que Wordsworth plasma sua poesia. The Prelude é um poema inteiramente escrito em versos brancos, todos decassílabos, que tomam o pé iâmbico como norma  (da qual o poeta se desvia com frequência apenas moderada). Assim, The Prelude emparelhou-se como maior exemplar histórico da autossuficiência rítmica do blank verse ao lado do épico moderno de John Milton, Paradise Lost, que serviu ao romântico como modelo e como fonte da chamada angústia da influência. Wordsworth ocupa um lugar travessia na poética ocidental: é, como aponta Harold Bloom, fundador da poesia moderna, ao mesmo tempo em que reclama indisfarçavelmente seu lugar de herdeiro direto da alta poesia de Chaucer, Spenser, Shakespeare e Milton.
A tradução que proponho justifica-se pela proposta de buscar reproduzir efeitos do poema também em efeito rítmico e em tom. Para tanto, ao confrontar o que identifico como deficiente na tradução portuguesa, elejo como prioritárias três qualidades do texto de chegada: o decassílabo, o iambo e a dicção.
O verso decassílabo, especialmente o decassílabo em pés iâmbicos - combinação que corresponde ao verso heroico -, era o metro por excelência da poesia inglesa. Correspondia à maior parte do legado de Chaucer, Spenser, Donne, Milton, Dryden, Pope e Cowper. Trata-se de uma chave com que a poesia de Wordsworth adentra a tradição de uma poesia mais alta e mais séria.
A dicção é o traço mais particular da voz do poeta. No famoso prefácio à segunda edição de Lyrical Ballads (1800), hoje lida como uma declaração aberta dos princípios do primeiro romantismo, o poeta adota como centro de seu projeto modernizante a simulação da linguagem popular.

O que apresentar no Seminário

            Para o seminário em questão, julguei que seria mais interessante ao público e mais adequado ao tempo de que disporei apresentar não um trecho da tradução de O Prelúdio, pois trata-se de um poema longo, de demorado desenvolvimento temático e, portanto, não há ali um fragmento que, em isolado, pudesse ser compreendido sem que, para tanto, fosse preciso investir um certo tempo em contextualização sobre a obra. Em vez disso, apresentarei uma tradução comentada de um de seus sonetos antológicos, The world is too much with us. Sendo um poema com formas rigidamente determinadas, as questões tradutórias se agudizam. Em comparação com a tradução de The Prelude, esta, sob a exigência de rimas e de desfechos pontiagudos, torna mais delicado o malabarismo entre cumprir forma e reproduzir dicções. Além do cumprimento às leis geométricas do soneto, é mister escolher palavras em um arranjo enunciativo que, como no original, não seja de todo estranho à oralidade, às entonações exclamativas e inflexões descartáveis da fala útil do cotidiano. Concebendo o poema como imitação ou representação de um discurso Barbara Herrnstein Smith nos lembra, “Um soneto não é meramente uma organização sintaticamente correta de símbolos linguísticos, mas também representa um enunciado ou discurso de algum tipo: talvez uma argumentação, uma declaração ou um lamento”. (Barbara H. Smith, Poetic Closure: A Study of How Poems End, p. 5).
A voz do poeta torna-se capaz de dizer verdades, mas o dizer em si não é: a voz é sempre a imitação de outra voz. Passados dois séculos não nos soa de modo algum coloquial a entonação de Wordsworth, justamente ele que deu um grande passo no sentido de mobilizar a potência estética da linguagem oral; de todo modo esta era a principal estratégia de seu projeto estético. Como tradutor interessa-me buscar a equivalência entre o nível de semelhança à fala oral que sua poesia afinal de contas tinha com a verdadeira fala oral. Qualquer tradutor que intencionalmente se esmere em reproduzir a exata razão entre formalidade e coloquialidade de um discurso está fadado a errar por favorecer a cada escolha um ou outro lado. Esse desvio, parece-me, é inevitável. De todo modo o tradutor que quer, além de verter informação simbólica ou semântica, reproduzir uma dicção deve tomar o nível de coloquialidade do texto original como um eixo e gravitar, o quanto possível, próximo a ele, procurando, muitas vezes dentro de uma mesma frase, fazer compensações em outro lugar por um desvio cometido já cometido.
 Proponho, ao apresentar a tradução desse soneto, comentar minhas escolhas como uma busca por esse equilíbrio. Algumas escolhas que parecem tornar a fala mais empostada são compensadas por outras que a tornam mais chã. Algumas inversões sintáticas poetizantes são apagadas (por exemplo, “So might I (...) have glimpses” torna-se “pra ter (...) uma visão”) e, em troca, me socorro de um sinônimo mais grave ou sentencioso na mesma frase (por exemplo, equivalendo o estado de um sujeito lírico “forlorn”, ‘abandonado’, por “exílio”). Tento indenizar a sensualidade da sextilha final, que é marcada por adjetivos ou substantivos sensoriais (pleasant lea, have glimpses, old Triton, wreathed horn) que a rígida escansão precisou descartar, com a inserção de alguns dêuticos que não constam no original (agora, neste campo; este exílio; Proteu saindo do mar), tentando assim aproximar a experiência do leitor ao gesto performativo do sujeito lírico.

THE WORLD IS TOO MUCH WITH US

The world is too much with us; late and soon,
Getting and spending, we lay waste our powers:
Little we see in Nature that is ours;
We have given our hearts away, a sordid boon!
This Sea that bares her bosom to the moon;
The winds that will be howling at all hours,
And are up-gathered now like sleeping flowers;
For this, for everything, we are out of tune;
It moves us not. — Great God! I’d rather be
A Pagan suckled in a creed outworn;
So might I, standing on this pleasant lea,
Have glimpses that would make me less forlorn;
Have sight of Proteus rising from the sea;
Or hear old Triton blow his wreathèd horn.

O MUNDO A NÓS SE AGARRA

O mundo a nós se agarra, noite e dia
— perdendo, obtendo —, e nos jogamos fora.
Demos o coração como penhora
sem nada obter de natural: triste avaria!
C’o Mar despido à lua que o alumia;
c’o vento que uivará a toda hora
mas feito flor que dorme atou-se agora;
com tudo que há: perdemos sintonia.
Que pena, ó Deus, não ser homem pagão
pra ter, à luz de fé já obsoleta,
agora, neste campo, uma visão
que em socorro a este exílio se cometa:
Proteu saindo já do mar; Tritão
soprando a concha feito uma corneta.

“POEMA PORRADA”: CRÍTICA E TRADUÇÃO

 

Francisco Assis De Matteu Monteiro


Linha de pesquisa: Tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: Roberto Piva, escrita automática, performance, desejo e erotismo.

Partindo de conceitos extraídos do texto Poetry as Fiction de Barbara Smith, e passando pelas formulações de Shoshana Felman em The Perversion of Promising – onde o conceito de linguagem performativa é abordado – o escopo desse artigo será uma investigação da dicção construída em Paranoia (primeiro livro de Roberto Piva), tomando a exegese do “Poema Porrada” enquanto amostragem paradigmática do livro como todo. Além do suporte teórico já mencionado, a concepção de crueldade conforme encontrada no Manifesto do Teatro da Crueldade, escrito por Antonin Artaud, também será aproveitada.
A concepção poética que transparece em Paranoia possui muitos pontos de contato com o surrealismo e a poesia beat, possibilidades de intertexto difícil de serem ignoradas. Tendo isso em vista, por que não traduzir Roberto Piva para o inglês (na França, por exemplo, Piva foi publicado na revista editada por Breton, La Bréche - Action Surrealisté)? Por que não viabilizar um poeta brasileiro para o resto do mundo anglófono com a mesma avidez com que traduzimos e importamos textos estrangeiros? Pensando nisso, o objetivo ao criar uma tradução de Paranoia para o inglês, é tornar esse nosso poeta acessível fora do Brasil (visando não exclusivamente este ou aquele país, mas sim um público anglófono interessado).
Recriar a dicção de Piva na língua inglesa talvez possa estimular diálogos e estudos entre ele e os intermináveis poetas que o acompanharam em suas noitadas dionisíacas (Camões, Dante, Dostoiévski, Ginsberg, Lautréamont, Leopardi, Lorca, Rilke, Rimbaud, Tolstói e Whitman), inclusive, e principalmente os poetas brasileiros (Álvares de Azevedo, Jorge de Lima, Mário de Andrade, e Murilo Mendes). Além disso, toda tradução é a criação de um método tradutório, e esta em específico, indo na contramão do          que a maioria dos tradutores na academia brasileira se propõe a fazer, levanta questões pertinentes sobre o traduzir enquanto ato às avessas que disponibiliza poesia brasileira sem pressupor a sua procura a priori.
O tema principal deste capítulo do meu estudo tradutório de Paranoia é a linguagem performativa, assim denominada pois busca causar algum tipo de impacto e obter um certo efeito ou resultado. Segundo Shoshana Felman, em The Perversion of Promising (1983), os personagens em Don Juan (1665) de Molière, na sua grande maioria, tratam a língua como um instrumento para a transmissão de verdades (a serviço do conhecimento), sendo que essa visão de língua está ligada a um modo de conhecer a realidade que se dá através da correspondência entre um ato de fala e o seu referente.
Assim, os personagens em Don Juan estão ocupados e preocupados com a questão da veracidade das coisas que o protagonista diz (os pedidos de casamento, e as promessas de amor, por exemplo), enquanto o próprio Don Juan, excepcionalmente, enxerga a língua de outra forma, a fala para ele é um ato em si, e possui enquanto tal, o poder de modificar uma situação real. Diz-se então que a concepção de língua representada por ele é performativa, e portanto, pertence a outro campo que não é o do verdadeiro ou falso, mas sim ao campo da utilidade, do prazer e do gozo, e da apreciação. Podemos qualificar uma linguagem considerada performativa apenas enquanto bem ou mal sucedida, feliz ou infeliz na criação de determinado efeito.
Partindo do “Poema Porrada” será traçado aqui o perfil de uma poética que permeia a dicção transgressora de Piva em Paranoia. O que nos interessa nessa aproximação é a ideia de que a sedução nada mais é do que a produção de uma linguagem aprazível, ou ainda poética, cujo funcionamento é como o da lingugagem performativa. Nas palavras do próprio Don Juan.

It is extremely sweet to reduce a young beauty’s heart to submission, through a hundred flatteries . . . But once you are a master, there is no more to say, nor anything left to wish for; the best part of the passion is spent. (Felman, 1983, p.15)

Pode ser inferido no trecho acima que o desejo de Don Juan é simultaneamente desejo pelo desejo em si, e desejo pela linguagem. Trata-se de um desejo que ao desejar o próprio desejo, deseja sua própria linguagem, fazendo da promessa amorosa, o domínio por excelência da linguagem poética. Por isso, convém destacar a dimensão performática da linguagem, ou seja, seu efeito nos corpos. Que tipo de efeito o “Poema Porrada” cria a partir da sua configuração e estrutura, quais são as suas peculiaridades, e que tipo de efeito podem produzir. Na fala de Don Juan, por exemplo, as lisonjas que ele dirige às moças só tem sentido porque elas ainda não foram conquistadas e submetidas à ele, quando isso acontece, não há mais nada a dizer, nada a desejar. O ato elocutório foi consumado e produziu um efeito extralingüístico (no caso, a mudança dos ânimos, o despertar da paixão). Será que é possível, e até que ponto, ler um poema e avaliar se é bem ou mal sucedido em termos de performance pode ser proveitoso?
O traço central da poesia de Roberto Piva em Paranoia é a imagem, ele retoma Murilo Mendes, mas “sem catolicismo, mais virulento e transgressor, adotando vigorosamento um ideário neopagão” (WILLER, 2005, p.150), seu pensamento analógico ganha contornos através de uma escrita sem amarras que ignora restrições lógicas e vocabulares, e nesse sentido, a dicção forjada parece partilhar de muitos dos traços constitutivas da linguagem interior, conforme descrita por Émile Benveniste na sua aula número 8.

A linguagem interior tem um caráter global, esquemático, não construído, não gramatical. É uma linguagem alusiva. [...] é rápida, incoerente, pois sempre se compreende a si mesmo. É sempre uma lingua situada, em um contexto presente, que faz parte da condição de linguagem, portanto, inteligível para o falante e apenas para ele. (BENVENISTE, 1968-69, p.132)

Esse conceito de linguagem interior descreve muito bem várias característica incorporadas na escrita automática, prática que aponta para o subconsciente e engloba técnicas caras à estéticas como surrealismo, beatnik, e todas as outras que prezam por uma linguagem alusiva e analogica em detrimento de uma linguagem mais assertiva e racional. Segundo a formulação de Marinetti, em 1912, no “Manifesto Técnico da Literatura Futurista”:

A analogia nada mais é do que o amor profundo que liga as coisas distantes, aparentemente diferentes e hostis (...) Quanto mais as imagens contiverem relações vastas, tanto mais longamente elas conservam sua força de estupefação. (WILLER, 2005, p. 151)

O amor, ou estado de paixão amorosa, é entendido aqui como a possibilidade de correspondência entre todas as coisas, mesmo as aparentemente incompatíveis, e mais do que isso, quanto mais inusitada e ampla for a aproximação, mais potente e duradoura será a analogia. Willer comenta sobre a analogia, que ela ataca os “princípios lógicos da identidade e da não-contradição, pelos quais uma coisa, sendo o que é, não pode ser outra”. Além da destruição simbólica do mundo e da ordem estabelecida, a transgressão no “Poema Porrada” se dá na própria linguagem, através da recusa de uma razão discursiva mundana e seus paradigmas de identidade e contradição. Em entrevista concedida a Fabio Weintraub, Piva diz ter se inspirado no método paranóico-crítico de Salvador Dali ao escrever os poemas de Paranoia.

Dali criou esse método a partir do delírio do paranóico. (...) o paranóico se fixa num detalhe e constrói um mundo alucinatório, imaginário, a partir daquele detalhe. Um poema como “Praça da República dos meus Sonhos”, por exemplo, foi construído a  partir dos detalhes da praça, num delírio semelhante ao do paranóico. Só que não é um poema de alucinação persecutória. Apesar de eu também me sentir um pouco perseguido dentro desta cidade, onde você precisa ser passarinho para atravessar a rua, para não ser atropelado. Não é isso? O poeta Allen Ginsberg dizia que a realidade é que era paranóica, não ele.

Parece sobreviver em Piva um vestígio das civilizações pagãs, seu poemas são adeptos de uma certa pederastia poética, traço que consiste numa espécie de amizade erótica e apadrinhamento entre autores que transcende o plano do poema, apontando diretamente para a realidade externa da cidade, e dos autores e suas obras. É do enfoque pederasta entrelaçado com a ambientação alucinatória paulistana que extraímos o padrinho que rege a sensualidade homossexual de Piva, Mário de Andrade. Se Paranoia segue algum modelo apenas para depois se desviar magistralmente de encontro ao horror lautreamontiano e às imagens surreais blasfematórias, esse modelo é a Paulicéia Desvairada (1922) de Mário.
Como característica desviante geral da poética de Piva, é possível destacar o caráter entrópico e anti discursivo da sua poesia. Se em Paulicéia desvairada vemos um Mário de Andrade “tímido e recatado, assim como sua Paulicéia era provinciana e restrita” (Willer, 2005), em Piva temos a vitória do pensamento analógico sobre o racional, da rebelião sobre a ordem estabelecida, e da cidade grande sobre qualquer outra forma de selvageria encontrada na natureza. Ou seja, encontrar uma dicção estrangeira para Piva implica em desarticular o discurso racional e trabalhar com analogias e imagens poéticas alucinatórias.
É aí que entra outra questão inerente aos poemas de Paranoia, as fotos em preto e branco da cidade de São Paulo na década de 60, capturadas pelo olhar delirante do fotógrafo Wesley Duke Lee. Tanto em Piva como em Lee, podemos destacar o dionisíaco como elemento estético organizador. Nas palavras de Piva, parafraseando Nietzsche, “o dionisismo é uma das religiões mais profundas que já existiram. (...) As artes da aparência empalideceram diante de uma arte que proclamava a sabedoria na sua própria embriaguez”.


TRADUÇÃO COMENTADA DOS CANTOS DE EZRA POUND (I-XVI)

 

Rodolfo Brandão de Proença Jaruga


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientador: Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: Ezra Pound, Os Cantos, Tradução

A dissertação consiste num trabalho de tradução poética dos Cantos de Ezra Pound (I-XVI), acompanhada de comentários literários. Essa atividade principal é precedida de uma apresentação dos Cantos e um estudo sobre a recepção da obra de Pound no Brasil. Ao fim, faz-se uma reflexão teórica sobre a prática tradutória. Esses três textos – apresentação dos Cantos, estudo sobre a recepção da obra do poeta, e reflexão sobre a tradução – foram concebidos em formato de artigo acadêmico, mas dispostos de certa forma que cumpram a função de capítulos e sirvam respectivamente ao propósito de elucidar o objeto de estudo, justificar a pertinência e necessidade de uma nova tradução e relatar a experiência tradutória, isto é, o rigor metodológico.
O primeiro capítulo da dissertação, denominado Os Cantos de Ezra Pound, discute a estrutura da obra, relacionando-a com outros poemas, em especial a Odisseia, as Metamorfoses e a Comédia. Ao realizar essa discussão e recuperar alguns aspectos da crítica especializada nacional e internacional, apresento, em linhas gerais, a minha interpretação da obra, que se contrapõe, de certo modo, à recepção demasiado formalista que Pound teve no Brasil. Por considerar que o debate “o que são os Cantos” ganha em profundidade ao se levar em conta o que o próprio Pound disse sobre seu poema, selecionei duas dúzias de afirmações que ele fez sobre o poema. Isso constitui o Anexo 1, que se relaciona, por parataxe, com o primeiro capítulo.
O capítulo seguinte, intitulado A recepção de Ezra Pound no Brasil, consiste no levantamento de: a) traduções da obra de Pound; b) artigos ou livros sobre a obra de Pound, produzidos aqui ou traduzidos ao português e introduzidos em nosso contexto literário; c) trabalhos acadêmicos sobre o tema. Essa breve resenha é permeada por comentários sobre as omissões ou escolhas dos poetas, críticos e acadêmicos. E é exatamente porque, a meu ver, existem aspectos relevantíssimos da obra de Pound, e em especial dos Cantos, que foram solenemente ignorados pela crítica pátria, que se justifica uma nova tradução do poema, bem como uma mudança nos rumos da recepção crítica.
O terceiro capítulo consiste na tradução dos dezesseis primeiros cantos, desacompanhadas do original inglês. Sigo o texto da edição da New Directions, embora reconheça os seus problemas e os discuta no Apêndice 1. Os Cantos carecem de uma variorum, ou pelo menos de uma revisão editorial. Enquanto isso não ocorre, o melhor que se faz é traduzir o texto no estado atual em que ele se encontra.
 O quarto capítulo constitui-se de comentários literários aos Cantos. Não são notas explicativas, nem de referência onomástica, nem sobre o processo tradutório: são comentários a um ou mais aspectos de cada canto, das mais diversas naturezas (poética, linguística, mitológica, comparativa, etc.) que não possuem o objetivo de esgotar uma interpretação. Trata-se de exegese, sem pretensão totalizante, que permitirá, ao menos, vislumbrar quais elementos e questões estão em jogo no poema. O objetivo é produzir textos que, no seu conjunto, favoreçam uma renovação da recepção dos Cantos no Brasil, mostrando, ainda que de relance, as inúmeras questões formais e temáticas implicadas no poema. São comentados em conjunto, por conformarem uma seção com certa unidade, os seguintes cantos: 5 a 7 (Truth and Caliope); 8 a 11 (Malatesta Cantos); 14 e 15 (Hell Cantos). Não anotei o poema porque entendo que ele já está exaustivamente anotado. E traduzir ou compilar notas de terceiros, embora contribua para a divulgação e esclarecimento do poema entre os leitores brasileiros, e possa constar de uma eventual nova edição do poema em português, é mais um trabalho editorial que acadêmico.
A dissertação conclui-se com uma reflexão sobre a tradução dos Cantos. Essa reflexão faz foco no fato de os Cantos serem compostos a partir de outros textos, literários ou não, e na possibilidade de traduzir o poema levando em conta as fontes. Traduzir o canto I é traduzir Pound, mas também Homero. Traduzir o canto II é também traduzir Ovídio. Todos os cantos se constituem a partir de outros textos e a minha tradução se realiza levando isso em conta. O capítulo final, portanto, é uma reflexão, a posteriori, sobre a tradução de um texto que remete diretamente a outros textos, os quais, por sua vez, muitas vezes já estão inseridos em nosso sistema literário e possuem, destarte, uma tradição em nossa língua. As implicações e desafios de uma tradução que leva em consideração as fontes são discutidas neste último capítulo.

Ir às fontes para traduzir Os Cantos : o que apresentar neste Seminário

Como dito acima, minha dissertação é um trabalho de tradução parcial dos Cantos de Ezra Pound. Esse longo poema foi composto a partir de inúmeras fontes literárias e históricas, que “entram” no texto de muitos modos, como tradução, resumo, recorte, pastiche, etc. De certa forma, os Cantos são uma colagem de outros textos, embora não se resumam a isso. A tradução que estou realizando leva em conta não só o texto de Pound, mas também as fontes das quais ele partiu para a elaboração do poema.
Neste sentido, a versão do canto primeiro, que pretendo apresentar neste Seminário de Teses e Dissertações em Andamento, funciona como um laboratório, um microcosmo de todo o trabalho, já que o canto consiste quase integralmente numa tradução muito peculiar de um episódio da Odisseia, via versão latina de Andreas Divus. O que proponho não é uma mera tradução do canto de Ezra Pound, nem mesmo uma tradução de Homero. Eu proponho que os três textos – o original de Homero, a versão latina de Divus, e a recriação de Pound – sejam traduzidos num só, e isso levando em conta a tradição luso-brasileira de versões homéricas. Abaixo, a tradução do canto I, que pretendo apresentar neste seminário.

Canto I

E descer ao navio,
dar quilha às ondas contra o mar divino,
e mastro e vela alçarmos sobre aquela negra nave,
a carregar ovelhas e também os nossos corpos
graves, lacrimantes, e ventos vindos pela popa
a nos inflar a vela e nos levar além,
benefício de Circe, a deusa de belos cabelos.
Embarcados e com vento a nos forçar o leme,
à vela cheia viajamos pelo mar até o fim do dia.
O sol a seu repouso, sombras sobre o oceano, 
às lindes nós chegamos das mais fundas águas,
terras de Ciméria, cidades populosas
cobertas por espessa névoa,
jamais tocadas pela luz do sol,
nem se extendido às estrelas, nem se de volta do céu,
noite a mais negra ali se estende sobre miseráveis.
Na vazante do Oceano, nós atracamos no local
que nos predisse Circe.
Aqui consagram ritos Euríloco e Perímedes
e eu saco a espada da bainha e escavo a cova cubital.
Vertemos libações a cada morto,
primeiro hidromel e depois vinho e também água,
misturados com farinha branca.
E eu oro aos mortos de pálida face,
tornado a Ítaca estéreis touras das melhores
em sacrifício, a cobrir de dons a pira,
e uma ovelha inteira pra Tirésias, negra ovelha-guia.
O sangue escuro escorre pela fossa
e almas vêm do Érebo, de cadáveres
de noivas e rapazes e de velhos tão sofridos,
virgens de choro prematuro,
e homens muitos mutilados pelo bronze das lanças,
mortos de guerra que inda portam cruentas armas.
Essa multidão me rodeava. Gritando, pálido,
aos homens clamo por mais bestas,
por gado degolado, ovelhas imoladas pelo bronze.
Vertido unguento, aos deuses clamo,
a Plutão o forte, e a louvada Prosérpina.
Co'a fina espada em minhas mãos
afasto então da fossa os mortos impotentes
até que enfim eu possa ouvir Tirésias.
Porém quem vem primeiro é Elpenor,
nosso amigo Elpenor, insepulto,
abandonado a céu aberto, uma carcaça
que deixamos lá na casa de Circe,
sem velório e sem mortalha, pois outras lides nos urgiam.
Condoído, clamei-lhe sem demora, Elpenor!
Como foi que você veio a esta praia escura,
a pé, mais rápido que meus marujos?
E ele, grave: mau fado e vinho farto,
no lar de Circe adormeci.
Descendo a larga escada descuidado,
caí contra a pilastra, a nuca estraçalhada,
a alma desceu ao Inferno.
Mas eu lhe imploro, meu senhor, não me abandone
sem velório e sem sepulcro,
recolhe as minhas armas, erige a minha tumba à beira mar,
inscrito: um homem sem fortuna, mas um nome a ser lembrado.
E finca em pé meu remo, que entre amigos eu ginguei.

E veio-me Anticleia, que afastei, e então Tirésias Tebano,
portando o seu cajado douro, notou-me e
por primeiro disse, por segunda vez? Por que,
ó desgraçado, a enfrentar os mortos desolados nesta triste terra,
afasta-te da fossa, deixa-me beber do sangue para o vaticínio.
E eu recuei e o velho forte pelo sangue então me disse,
Ulisses, terás retorno por Netuno rancoroso,
negros mares, todos os teus pares perderás.

E veio-me Anticleia então.
Jaz em paz Divus, eu digo, isto é Andreas Divus,
in officina Wecheli, 1538, direto de Homero.
E ele navegou entre as sereias, ali e além e até Circe.
Venerandam, pelo verso do cretense,
co'a coroa douro, Afrodite,
cypri munimenta sortita est, orichalchi,
com douradas faixas e colares, tu,
de pálpebras escuras, portando
o ramo douro do argicida. E eis que:


DA POESIA À MÚSICA À POESIA: RISCOS DA TRADUÇÃO

 

Participantes:

Natan Schäfer (mestrado)

Yuri Mollinari (mestrado)

 

Mediação: Prof. Dr. Caetano Galindo


Resumos:

CHANTEFABLES & CHANTEFLEURS: REVISÃO CRÍTICA E TRADUÇÃO DOS POEMAS INFANTIS DE ROBERT DESNOS

 

Natan Schäfer


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: tradução; música; surrealismo; poesia francesa

O surrealismo, umas das grandes vanguardas do século passado, possui uma indiscutível importância e contribuição para a história da poesia. O movimento conta em suas fileiras com alguns dos grandes poetas do século XX. Robert Desnos, considerado por Breton (WILLER apud DESNOS, 2015: 7) o “mais surrealista dentre os surrealistas”, é um destes. Apesar disto, sua obra é praticamente desconhecida no Brasil[1].
Dentre as principais obras de Desnos, inclusive por sua posição cronológica, figurando com as derradeiras obras do poeta, se destacam especialmente 30 Chantefables pour les enfants sages, editado em 1944, e Chantefables & Chantefleurs , reunião póstuma (1955), tema deste projeto de revisão crítica e tradução.
Chantefables & Chantefleurs (DESNOS, 1999) é uma das obras derradeiras de Robert Desnos, concluída pelo poeta em 1944, pouco antes de ser capturado pela Gestapo e seguir para o campo de concentração de Terezin. Trata-se de uma reunião de pequenos poemas que versam sobre animais (Chantefables , publicados em separado em 1944 pela editora alemã Gründ) e flores (Chantefleurs). À primeira vista, tratam-se de poemas infantis, destinados a serem cantados com e para “crianças inteligentes” - como sugere o subtítulo da primeira edição de Chantefables (apenas acrescida das Chantefleurs em 1955). No entanto, a riqueza da linguagem e sonoridade empregadas subverte a função didática tradicionalmente assumida por fábulas e composições deste tipo (NUNLEY, 2010; BORDINI, 1986). E mais, para além da exuberância formal dos poemas, Desnos vale-se da aparente ingenuidade de sua forma e temática para realizar ácidas críticas à ocupação nazista que assolava a França à época – e que acabou levando-o à morte.
Este projeto de mestrado procura realizar uma revisão crítica e uma tradução rítmica – seguindo as propostas de Gontijo Flores (2014) – de Chantefables & Chantefleurs , que atente para as possibilidades de performance abertas pela obra. Esta tradução rítmica visa manter o caráter de “canção” que Desnos propôs para estes poemas, os quais foram musicados pela primeira vez por Jean Wiener em 1955. Estas canções, por sua vez, servirão como guia-base para este projeto de tradução, uma vez que, além de se configurarem como a realização do desejo de Desnos, sem dúvida influenciaram o processo de recepção desta obra e, quiçá, podem ser inclusive responsáveis por seu grande sucesso – especulação que se pretende aprofundar ao longo do projeto. Logo, é importante salientar que não se pretende musicar os poemas mas empreender uma tradução que permita a realização de performances que mantenham as linhas melódicas propostas por Wiener. Assim, também é fundamental para a execução deste projeto o trabalho de Carlos Rennó (1991), que verteu para o português algumas canções de Cole Porter. Rennó (RENNÓ, 1991:42), ao comentar suas versões, esclarece ter-se orientado
“por parâmetros estéticos que levassem em conta não apenas seus aspectos temáticos e conteudísticos [das canções de Porter] mas também, e às vezes principalmente, os procedimentos formais e estilísticos por ele adotados”.

E completa afirmando que:
“(...) as letras deveriam se colocar exatamente sobre as frases melódicas originais, respeitando suas marcas acentuais e seu número de notas, e assim se adaptar a uma perfeita e espontânea interpretação, não se prestando a modificações das linhas dos cantos.” (RENNÓ, 1991: 42).

Dentre as razões que motivaram a escolha desta obra, temos que, em 1944, pouco antes de ser capturado pela Gestapo, o próprio Desnos escreve em seu diário: “Ce que j’écris ici ou ailleurs n’interessera sans doute dans l’avenir que quelques curieux espacés au long des anées. (...) Les poèmes pour les enfants auront survécu un peu plus longtemps que le reste” (apud NUNLEY, 2010). Ou seja, Desnos estava consciente da força de seu Chantefables & Chantefleurs , de longe a sua obra mais popular na França até hoje (NUNLEY, 2010). Contudo, a escolha desta obra como tema deste projeto se justifica não somente graças ao seu sucesso comercial.
Apesar de aparentemente destinar-se ao público infantil, Chantefables & Chantefleurs, como mencionado anteriormente, estabelece um rico diálogo crítico com a situação política francesa da época. No entanto, Nunley (2010) sublinha que, diferentemente do que aconteceu com a obra clandestina de Desnos, mais desbragadamente subversiva e combativa, poucos esforços vêm sendo feitos no sentido de realizar-se uma leitura política da obra não-clandestina do poeta – que é o caso de Chantefables & Chantefleurs . Dessa forma, acredita-se que sua revisão e tradução pode somar esforços no sentido de preencher esta lacuna, evidenciando os comentários sobre o contexto da ocupação nazista na França, contidos nas entrelinhas das exuberâncias e do exibicionismo verbal dos poemas (NUNLEY, 2010). Além disso, acredita-se que a tradução e divulgação desta obra em português pode cumprir no Brasil atual papel semelhante ao que cumpriu na França dos anos 1940, uma vez que, apesar de não nos encontrarmos sob um regime fascista, vivemos uma situação política delicada e conturbada.
Quanto aos aspectos formais da obra de Desnos, Atienza (2011) encontra em suas canções infantis “técnicas de carácter puramente formal menos estudiadas [por teóricos do surrealismo] y más sutiles”. Portanto, a revisão crítica a que se propõe este projeto busca também somar esforços aos demais estudos dedicados a esta vertente do surrealismo, a qual extrai o maravilhoso da linguagem em si mesma e, assim, afasta-se do “mainstream Bretonian surrealism” (CONLEY, 2003). Este último, por sua vez, é baseado em metáforas as quais geram o maravilhoso apoiando-se na função referencial da linguagem (“Il y a un homme coupé en deux par la fenêtre”, BRETON apud ATIENZA, 2011) -, enquanto a vertente dissidente a que se filia Desnos elabora o maravilhoso a partir da linguagem em si mesma[2], ou seja, jogando com os significantes mais do que com os referentes e significados (“Ô mon crâne étoile de nacre qui s’étiole”, DESNOS apud ATIENZA, 2011). Dentre as técnicas empregadas por Desnos e analisadas por Atienza (2011), estão: jogos com rima, repetições, paralelismos, anáforas, homonímias e paronomásias – técnicas especialmente caras ao movimento concretista[3].
Aliás, outro aspecto que justifica a revisão crítica é o fato de que devido à sua militância surrealista, Desnos não foi incluído no paideuma poético brasileiro estabelecido pela vanguarda concretista a partir de 1950[4]. Sua obra tornou-se, assim, praticamente desconhecida no Brasil, a despeito de convergências que podem ser encontradas entre sua obra com a dos concretos e outros poetas brasileiros. Além da já citada filiação a uma corrente dissidente “formalista” do surrealismo, outro exemplo de convergência entre Desnos e os concretos se encontra no manifesto “nova poesia: concreta (manifesto)”, onde propõe-se: “uma arte geral da linguagem. propaganda, imprensa, rádio, televisão, cinema. uma arte popular.” (PIGNATARI apud CAMPOS et al, 2006). Ora, com exceção da televisão - ainda muito incipiente na primeira metade do século XX - Desnos envolveu-se com todas as mídias mencionadas por Pignatari (PELLEGRINI, 2012: 126; CONLEY 2003)!
Quanto ao caráter infanto-juvenil de Chantefables & Chantefleurs , uma tradução que possibilitasse o acesso dessa obra às crianças brasileiras seria, sem dúvida, muito interessante. Pois, como afirma Bordini (1986: 7):
O que impera, na média da produção ficcional para crianças é o despautério. Campeiam a imbecilização das fórmulas verbais com diminutivos e adjetivações profusas e construções frasais canhestras; a apresentação desavergonhada de absolutos duvidosos e irretorquíveis sobre o real, desestimulando a reflexão e a crítica; a censura aos aspectos menos edificantes da conduta humana e, em especial, a vontade desbragada de ensinar, sejam atitudes morais ou informações tidas por úteis, como se a obra devesse substituir os manuais de ensino e a ação educadora de pais e professores.
Ainda que este breve espaço não permita uma longa análise, ao se observar as técnicas empregadas por Desnos (Alienza, 2011) assim como a possibilidade de leitura em chave política, pode-se afirmar que Chantefables & Chantefleurs opõe-se diametralmente ao tipo de poesia infantil criticada por Bordini (1986). Portanto, a divulgação desta obra no Brasil se somaria a uma consciência cada vez maior da necessidade de textos poeticamente conscientes e bem-cuidados para as crianças e adultos.


Neste primeiro momento deste projeto, além da realização de traduções-piloto das poemas em questão, está se dando a leitura e cotejo com autores que, de alguma maneira, podem ter suas poéticas aproximadas à de Desnos - seja pelo posicionamento político, temática, forma ou técnicas empregadas em sua produção poética – de modo a servir como baliza e norte. Dentre estes, destacam-se: Manuel Bandeira, pela sua dicção prosaica – a partir de “Ritmo Dissoluto” - e consciência rítmica - mesmo em verso livre -, e devido a seu “antilirismo” – por exemplo, as aproximações com o universo publicitário (“Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”) e jornalístico (“Poema tirado de uma notícia de jornal”); Sosígenes Costa, pelo uso de formas fixas para abordagem de temas populares, utilizando também uma “técnica de associação semântico-sonora”, muito próxima da empregada em Chantefables & Chantefleurs , (ATIENZA, 2011), a qual gera “curiosos efeitos de non-sense” (PAES apud COSTA, 1978); José Paulo Paes, que incursionou com sucesso pelas veredas da literura infantil e que dedicou-se ao surrealismo em traduções e ensaios; e Manoel de Barros, pela sintaxe peculiar, temática relacionada à natureza e uso do nonsense com uma ferramenta poética (DAVID, 2015).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ATIENZA, Ángel Luis Luján. Lo maravilloso moderno surrealista y el lenguaje de la poesía infantil y popular . Revista de Literaturas populares, Año XI / número 1, pp. 101-129.
BANDEIRA, Manuel. Estrela da Vida Inteira . 3ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
CAMPOS, Augusto et al. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950 – 1960. Cotia, SP: Ateliê Editorial, 2006.
CONLEY, Katherine. “Not a Nervous Woman”: Robert Desnos and Surrealist Literary History. South Central Review, Vol. 20, No. 2/4 (Summer – Winter, 2003), pp. 111-130.
DESNOS, Robert. Oeuvres complètes , II. Paris: Gallimard, 1999.
NUNLEY, Charles. Sounding the Limits of Resistance Memory: Robert Desnos, Comics and Nursery Rhymes . The French Review, vol. 84, No. 2 (December 2010), pp. 284-298.
PAES, J. P. Tradução : a ponte necessária. São Paulo: Ática, 1990
PELLEGRINI, Aldo. Antología de la poesia surrealista . Buenos Aires: Editorial Argonauta, 2012.
RENNÓ, Carlos. COLE PORTER: Canções, Versões . São Paulo: Editora Paulicéia, 1991.


A TRADUÇÃO PERFORMÁTICO-MUSICAL: OS CAMINHOS DOS TROIS POÈMES DE STÉPHANE MALLARMÉ

 

Yuri Amaury Pires Molinari


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientador: Prof. Dr. Guilherme Gontijo Flores

Palavras-chave: Poesia. Música. Performance. Mallarmé. Debussy.

Dentre as muitas explorações musicais feitas por Claude Debussy de poemas de autores franceses, destacaremos como objeto de análise os Trois Poèmes de Stéphane Mallarmé, ciclo de três canções compostas para voz e piano, e ancoradas, evidentemente, em três poemas (Soupir, Éventail e Placet Futile) do escritor Stéphane Mallarmé. O jogo de relações entre texto verbal e musical, entre poesia e música, proposto pela obra, suscita reflexões sobre os limites e as interpenetrações destas duas artes. Para esboçar um movimento crítico visando a natureza das canções e das imbricações poético-musicais nelas presentes, efetuaremos, primeiramente, uma análise dos elementos formais da primeira canção do ciclo, Soupir, para, posteriormente, passar a considerações mais profundas acerca das relações entre os elementos levantados. Leve-se em consideração o primeiro verso da obra em questão:
Figura 1
A partir das colocações sobre os seis níveis de informação textual de Umberto Eco, presentes no Tratado Geral de Semiótica (2014), pode-se levantar os seguintes elementos no texto verbal: caracteres alfabéticos de cor preta dispostos no espaço branco da folha de papel; um verso alexandrino com cesura na sexta sílaba, constituído por seis jambos, onde destacam-se fonemas nasais e a consoante vibrante ‘r’; um período de uma frase maior, onde se encontra o sujeito em posição inicial, seguido pelo complemento verbal e vocativo; um período que, apesar de incompleto, denota a existência de um interlocutor (calme soeur) na direção de cujo rosto desloca-se a alma do eu-lírico; o léxico poético tipicamente fin-de-siècle, o recurso retórico a um interlocutor e o deslocamento do verbo como recursos estilísticos geradores de estranhamento; hipercodificação das palavras âme, front, rêve e soeur, que abrem-se para diversas possibilidades de sentido no texto poético, ocasionando leituras diferentes.
Já para o texto musical, encontra-se: o timbre da voz humana, cantada de modo piano e contido, aumentando-se a duração da vogal de âme e diminuindo-se a de front e ; um compasso binário simples seguido por dois compassos quaternários compostos, em um movimento predominantemente ascendente; uma linha que se movimenta em intervalos majoritariamente curtos em uma escala de Fá menor; um conjunto de sete notas que, da primeira à última, abarca uma oitava, e oscila entre o primeiro modo de uma escala de Mi bemol maior e o último de uma de Fá menor; uma melodia que omite deliberadamente uma nota, de modo que não se possa determinar a escala em que ela se encontra, gerando, assim, um texto musical ambíguo potencializado pelo compasso heterodoxo e o movimento gradativo entre as notas; um sintagma musical hipercodificado que, através do ocultamento de um grau da escala subjacente, instaura ambiguidade.
A coexistência de poema e música – estrutura verbal amalgamada a harmonia e melodia – situa a canção de Debussy como tradução intersemiótica indicial do texto de Mallarmé. Utiliza-se, aqui, a categorização de tradução intersemiótica (ou seja, entre sistemas de significação distintos) proposta por Julio Plaza (2013), baseada na tricotomia de signos de Charles S. Peirce: a tradução indicial, diferentemente da icônica (recriação do original a partir de analogias qualitativas) e da simbólica (baseada numa relação de equivalência entre signos de diferentes sistemas), veicula em si o texto original, ao mesmo tempo que agrega a ele aspectos de significação pertencentes a outra semiótica.
Um primeiro aspecto da semiótica musical adicionado ao poema nessa tradução é típico da semioticidade do meio acústico: transposto para um canal auditivo, e não mais visual, o poema não pode mais ser apreendido de forma simultânea, nem identificado em sua fonte ou recortado em uma amostragem conveniente. Enquanto linha melódica, a tradução musical jamais se oferece por inteiro, revelando seus sinais um a um e sucessivamente, e obrigando o ouvinte a consumir toda a informação sonora para que se possa estabelecer um sentido (PLAZA, 2013, p. 59). A canção potencializa a ambiguidade do poema, e, introduzindo-o em um espaço “sem fronteiras ou horizontes, um espaço fluente que independe da nossa posição em equilíbrio. O espaço acústico tem assim um caráter mais qualitativo e analógico do que o sentido visual.” (idem), opera a tridimensionalização do poema.
O segundo aspecto diz respeito à performance de leitura. Por um lado, Barbara Smith (1971) aponta que um poema equivale a uma partitura musical, servindo apenas como indicação para a enunciação física de um determinado evento de linguagem. Nesse caso, a pertinência da tradução musical residiria no acompanhamento instrumental do piano, que se constituiria como elemento de contextualização do texto poemático, desprovido, de outra maneira, de contexto histórico (SMITH, 1971, p. 275). Através das rubricas na partitura e do pulso e da harmonia gerados pelo piano, a canção estabeleceria um contexto de apreensão baseado fundamentalmente na ambiguidade musical gerada pelos acordes dúbios que se esquivam a campos tonais definidos. A cadência lenta, austera e de poucas notas que abre a obra instaura uma atmosfera introspectiva que, no entanto, dá lugar, a partir do quarto verso do poema, a um andamento que se acelera e esbanja notas e motivos – recontextualizando, assim, o texto em um âmbito da fantasia.
Por outro lado, as contribuições rítmicas e entoativas da tradução musical são evidentes, ao se considerar a estrutura tradicional dos versos em que o poema foi composto, e o ritmo normalmente associado a eles. A regularidade do alexandrino se parte e fragmenta sob as durações irregulares das linhas melódicas do canto, de maneira que o material sonoro do poema é reconfigurado em novos padrões que projetam sentidos insuspeitos, em conjunção com os aspectos semânticos e sintáticos do texto verbal.
O fato da performance singular do poema preconizada na canção já estar virtualmente contido nas possibilidades do texto de Mallarmé, todavia, evidencia que a linha de canto composta por Debussy – e, mesmo, o acompanhamento instrumental – são oriundos de uma performance particular do texto poético que se desenrolou no íntimo do compositor francês, por sob o ruído de sua “voz interna” (ZUMTHOR, 2014, p. 60), matizado de sua dicção própria de músico e sua historicidade enquanto leitor. Brotando do contato “indizivelmente particular” (idem, p. 53) do leitor - Debussy - com a obra, a tradução musical de Soupir se constitui como indicação de atualização de uma performance interior, virtualizada, de leitura do poema.

REFERÊNCIAS
ECO, Umberto. Tratado Geral de Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2014 [1976].
DEBUSSY, Claude. Trois poèmes de Stéphane Mallarmé. Paris: Durand & Cie, 1913. Disponível em: <http://imslp.org/wiki/3_Po%C3%A8mes_de_St%C3%A9phane_Malla rm%C3%A9_(Debussy,_Claude)>. Acesso em: 18 jul. 2016
MALLARMÉ, Stéphane. Poésies. Éditions Gallimard, 1992 [1887].
PLAZA, Julio. Tradução Intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2013.
SMITH, Barbara Herrnstein. Poetry as fiction”. New Literary History, 2, 2 (1971): 259-281.
ZUMTHOR, Paul. Performance, leitura e recepção. São Paulo: Cosac Naify, 2014 [2006].




Comunicações


OPINAR, REFLETIR, DECLAMAR, CRIAR: A POSSIBILIDADE DE SER OUTRO POR MEIO DA LEITURA LITERÁRIA DE POESIA

 

Adriano da Rosa Smaniotto


Linha de pesquisa: Didática da Literatura
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo V. Machado
Debatedor: Prof. Dr. Marcelo Paiva de Souza
                                                                      
Resumo:

Este trabalho tem por objetivo trazer à tona reflexões acerca da urgente necessidade de tornar o aluno do Ensino Médio um leitor efetivo de poesia, permitindo que sua voz e sua subjetividade façam parte da leitura literária, trazendo à tona seu conhecimento de mundo, seus valores, suas expectativas, a fim de construir a si e aos outros por meio das diversas reflexões propiciadas à luz de uma metodologia em que o espaço, o tempo, os papéis dos sujeitos leitores, as escolhas de leitura são diversos da maneira como têm sido concebidos nesta fase do ensino, como atestam as pesquisas de Dalvi (2013), Resende (2013), Bernardes (2013), Rouxel (2013), Langer (2005), entre outros. Entende-se, nessa ótica, a leitura literária enquanto elemento capaz de trazer criticidade ao aluno, num viés político-pedagógico (Dalvi, 2013), bem como a necessidade de uma educação transformadora (Freire, 1974/1996) e de se literaturizar a pedagogia e a escola (Larossa, 2004). Trata-se de uma pesquisa empírica, em que serão apresentados os primeiros dados advindos da proposta da união de leitura compartilhada (Colomer, 2007), produção de diários de leitura (Bronckart, 1998), declamação de poemas (Zumthor, 1983) e criação literária, a fim de se pensar em que sentido esta metodologia pode vir a ser uma das possíveis estratégias para reverter o quadro do ensino de leitura literária, atualmente insatisfatório e pautado na periodização e no historicismo literário.
A escolha a favor da leitura de poemas também é significativa diante da pouca presença da poesia entre os gêneros literários (Leminski, 1997), bem como da dificuldade de se ler poemas revelada não só pelos discentes, mas também por graduandos, os quais não se sentem preparados para ministrar aulas sobre a leitura literária. (Menezes; Coelho, 2016)

Palavras-chave: leitura literária de poesia; leitura compartilhada; leitores reais.
           
1 Poesia, leitura literária e escola

            Ler poesia não é atividade corriqueira, nem prática escolar comum, tampouco hábito familiar ou cultural. A questão não é nova, mas ainda intrigante àqueles que veem neste tipo de texto literário a possibilidade de aquisição cultural, desenvolvimento cognitivo e interação emocional. Poesia é osso duro de roer, é linguagem carregada de muita significação, cuja leitura exige esforço, atenção, concentração, percepção, interpretação, vontade, curtição, imaginação e, certamente para tudo isso, aprendizado. Como qualquer outra forma de arte, é preciso se familiarizar, conhecê-la em diferentes facetas, apurar o olhar e o ouvido, enamorar-se.
            “A poesia não quer adeptos, quer amantes”, disse Lorca(1928) em conferência certa vez. E tudo isso leva tempo, essa matéria que a sociedade dromológica insiste em extirpar. A cultura imediatista e cibernética quer apropriar-se da leitura de poesia pelo esteio da facilidade e da pressa, duas ações que não se lhe são sinônimas. E a escola infelizmente tem perpetuado esta ótica. Aliás, a desavença é antiga: em texto inaugural sobre o tratamento dado à poesia nas séries iniciais do ensino, Marisa Lajolo – uma das pioneiras dos estudos de leitura com ênfase no aluno brasileiro – mostrava o panorama histórico desde fins do século XIX e começo do século XX, em que Olavo Bilac e outros depunham contra um ensino não eficaz[5]. Ela iniciava emblemática: “parecem antigas as desavenças entre poetas e o uso que a escola costuma fazer da poesia.”(LAJOLO, 1993, p.41) Infelizmente pouco mudou. Mas antes da fogueira, os cadáveres.
            Expulsa da cidade ideal, até que fizesse sua defesa por meio da lírica, a poesia atravessou o mundo ocidental, e não só este, perfazendo um trajeto cínico e ao mesmo tempo garboso: intelectualizou-se, perpetrada pelos homens letrados reunidos sob a égide da Igreja, das primeiras escolas, da Universidade, dos Departamentos de Cultura e Setores públicos relacionados à arte; disseminou-se, divulgada por instâncias como o Jornalismo e seus suplementos literários, bem como pelas bibliotecas, livrarias, editoras e gráficas; resistiu, cultivada pelos poetas, por meio da criação pessoal, condizente àqueles centros ou não, como no caso da poesia popular. Cada âmbito descrito, em sua medida, legou-nos esta relação entre poeta, texto e leitor, em que o poema se inscreve.
            A poesia persiste, resiste, existe. Não ocupa mais a audiência pública, haja vista a pouca presença de indivíduos em recitais de poemas, tampouco é consumida enquanto livro na sociedade de consumo que faz da livraria apenas mais uma loja. Na sociedade em que tudo tem que dar lucro, a poesia contraria essa utilidade, pois ela é “o princípio do prazer no uso da linguagem. E os poderes deste mundo não suportam o prazer[6]”(LEMINSKI, 1997, p. 84). Assim se torna a “menos consumida de todas as artes, embora pareça ser a mais praticada, às escondidas” (PIGNATARI, 2004, p. 9) Acompanha o noviço do buço crescente na sua revolta e/ou conquista amorosa; fala pelos homens diante de suas maiores tragédias pessoais ou sociais;mas dorme plácida nas estantes do professor ocupado...
            Ao mesmo tempo, nos demais setores da vida humana sequer aparece, mas é bem-vinda no momento em que um discurso de formatura, uma reportagem televisiva, uma mensagem numa rede social queira adquirir para si o estatuto de culta, bem elaborada, inteligente, profunda, humana.
            A poesia conserva a aura de texto que traduz alguma beleza, saber, poder, prazer. É similar à atitude daqueles crentes de última hora, cujas rezas se realizam diante da necessidade de resolução de um mal imediato, mas que depois sentem as orações se revelarem fastidiosas e maçantes.O deus da poesia é invocado diante da desgraça do não saber o que dizer, da ameaça do inferno de não ser inteligente, culto e sábio.
            Ou se diz outra coisa de quem faz grandes poemas? Poesia, como dizia Pound, “é conversa entre homens inteligentes”(POUND,1989, p.8). Esta razão por si só seria suficiente para crer no valor de um poema, ou mesmo, por outro lado, serviria para reverter o descaso com que se tem tratado essa arte, cuja dimensão parece perdida.
            Todavia, embora sua relação atual com o indivíduo se dê por vias utilitárias e imediatistas, a poesia ao longo da história continua tendo esse lugar e esse papel difíceis de lhe suprimir: um discurso em que o trato linguístico se revela outro, o qual carrega por meio desse rearranjo na linha do tempo uma significação, capaz de falar de si e dos outros. Poesia é atividade humana e humanizante, por excelência.
            Por meio dela se exaltou a guerra em Arquíloco, o amor em Safo, a pátria em Camões, a modernidade em Álvaro de Campos, a opressão em Brecht, a natureza em Mishima, a liberdade em Whitman, o hermetismo em Mallarmé, a rebeldia de si e linguística em Rimbaud, o amor em Vinicius de Morais, a natureza em Manoel de Barros, o mundo e sua maquinaria em Drummond, o amarelo do nordeste em Cabral. Isso apenas para citar os poemas latentes nessas referências, que não se esgotam nem se limitam a tais rótulos: a lista seria infinda, ainda mais se trazidos os tantos outros temas por meio dos quais estes e outros poetas compuseram seus repertórios. Cabe a cada um encontrar o poema que lhe caiba, lê-lo e fazê-lo “falar”. Nisto Horácio já nos ensinara:

                                      Poesia é como pintura; uma te cativa mais, se te deténs mais perto; outra se te pões mais longe; esta prefere a penumbra; aquela quererá ser contemplada a plena luz, porque não teme o olhar penetrante do crítico; essa agradou uma vez, outra, dez vezes repetida, agradará sempre.(HORÁCIO, 2005, p. 65)

            Distância do olhar com que se observa; adequação ao meio em que é observada; capacidade de agradar. Retomando o trajeto “intelectual” da poesia é perceptível que a escola priorizou o olhar, mas não o didatizou. Ensinou que se deveria olhar o “quadro”, mas colocou todas as telas na mesma distância e sob a mesma luz, marcou uma distância limite para todos os observadores, a qual chamou “leitura” e, sobretudo, intentou convencer a todos que tal “pintura” agradaria, como se iguais em gosto fôssemos. O resultado é bem conhecido dos especialistas: esquemas que ensinam a interpretar o poema, mas não o tornam realmente significante para o leitor; repetições de conceitos cristalizados sobre determinados autores e obras, como se mudada a distância, como nos adverte o autor da Epístola aos Pisões, não mudasse a leitura; prescrições e precauções de toda ordem como se literatura não fosse antes de tudo um direito subjetivo.
            Além disso, quanto à questão do prazer, do agrado por meio da leitura, os estudos recentes em Leitura Literária comprovam que é justamente esta possibilidade de obtenção de deleite, aqui entendida como leitura que diga algo para o leitor, que tem sido muitas vezes negada ao aluno em detrimento de impor-lhe o “certo” olhar com que se olha o “quadro”, antes mesmo de tê-lo ouvido ou permitido que ele, enquanto observador digno, porque humano, descubra a distância com que o observa, como nos adverte o bardo latino.Pode que ele, inclusive, como adverte Rouxel, sequer observe como o professor:

                                               Por outro lado, alguns professores fazem do encontro pessoal dos alunos e do texto um protocolo sem resultados, concessão feita à instituição. A palavra dada aos alunos é rapidamente confiscada em prol do discurso que se quer desenvolver. O sujeito leitor é amordaçado e negado... É preciso tempo e convicção para que os processos inovadores entrem verdadeiramente nos fatos. E é preciso sobretudo uma verdadeira formação de professores.(ROUXEL, 2015, p.292)
                                                              
            Por isso, o trabalho com a leitura literária de poesia está apenas no começo. Grande parte da aversão à poesia foi ensinada pela escola, por meio da associação indevida com dificuldade do texto e escolha de outro tipo de texto mais fácil em seu lugar. Pela omissão descarada, mas nunca assumida, de diversos professores em não realizar leituras de poemas com vistas a dar voz ao aluno e realizar compartilhadamente a interpretação, para que se possa falar do poema e ouvir falar do poema, para que o leitor comece a entender não o processo objetivo com que o professor analisa, mas o processo subjetivo com que ele, de um momento para outro, passa a ler poemas e se constitui num leitor real. Sem aprofundar aqui outros entraves, outras situações escolares corriqueiras, bem marcadas por Dalvi(2013), como o horário das aulas, a grade das disciplinas, a pressão dos conteúdos, a avaliação, a adoção de resumos literários, o livro didático fragmentário, a aula de história de literatura ao invés de leitura literária, entre outros aspectos, que só agravam a questão.
            Portanto, há necessidade de formar um leitor implicado (Rouxel, 2015) mais do que o leitor modelo de Eco; todavia, a escola e a academia (universidade) têm perpetuado a resistência ao advento do sujeito leitor, não só por desconhecimento, mas por insegurança e incapacidade. Menezes e Coelho afirmam que

                                               Em nossa prática como professores formadores de línguas e literaturas, habitualmente nos confrontamos com diferentes inquietações por parte dos alunos. Dentre as principais e mais frequentes queixas que nos apresentam, destacam-se a profunda insegurança e o sentimento de despreparo com relação ao ensino de literatura/textos literários na escola básica. Em outras palavras, recorrentemente, frases do tipo “não me sinto preparada(o) para ensinar literatura” ou “acho mais fácil dar aula de língua do que de literatura” participam do contexto das aulas.(MENEZES, COELHO, 2016, p.82-83)

            Papel, antecipe-se, dificílimo para o docente, que em muitos casos é um representante não do sujeito leitor, mas de uma dupla situação muito comum: ele não lê literatura, muito menos poesia. Estamos numa sociedade que quase não lê poesia, que quando pretende lê-la na escola ou na universidade, o faz por meio de metodologias que não contemplam o sujeito leitor e mediadas por quem muitas vezes sequer participou de uma leitura compartilhada, de um momento em que possa ter sentido no poema alguma forma de interação e significado para sua própria vida. Perfeitamente justificável a aversão à carmina, não?
            Por isso, a questão do diálogo entre os setores educacionais também se faz relevante, uma vez que a Metodologia do Ensino da Literatura é concebida não levando em conta a subjetividade do discente; mas armando estagiários e alunos com uma lista de terminologias e referências histórico-literárias que lhes confunde e lhes impede de que se realize a empatia e a interação com o texto, presentes na motivação daqueles que gostam de poesia: afinal, estes “diletantes” encontraram nos textos lidos a si próprios, seja pelo conteúdo (principalmente no começo de tal aquisição), seja pela beleza advinda de conteúdo e uso da linguagem no seu nível estético, aprimorados por meios de retomadas e novas incursões.
            Annie Rouxel, em entrevista sobre a questão, reafirma tal necessidade:
                                     
                                      Ou seja, formar um leitor implicado, que é o que considero o valor da leitura subjetiva. As causas desta evolução [...] 1) O formalismo no ensino que é mais preocupado com as ferramentas de análise do que com a própria leitura. A ritualização da leitura de modo como é praticada na escola, se manifesta através da implantação de trilhas formais que substituem a abordagem sensível do texto e deixam de fora os sujeitos leitores; ela trava a atividade interpretativa em vez de impulsioná-la.(ROUXEL, 2015, p. 282-283)

            É em nome de reverter esta situação, que este artigo explana uma possível proposta metodológica, que não tem a última palavra sobre o assunto, mas ousa reunir práticas já bem sucedidas como o uso de diários de leitura (Bronckart, 1998) e antologias, à teoria da leitura literária recente que acredita na necessidade de se pensar em leitores reais; para tanto se pretende permitir, por meio da leitura compartilhada de poemas, sem a pressão de notas e conteúdos, de espaço e tempo, o uso da opinião, entendida não como julgamento, mas como possibilidade de expressar-se, expor-se, exprimir-se por meio da fala pessoal, advinda da reflexão coletiva e individual no ato da leitura, que poderá, se convier, apoiar-se ou consumar-se na declamação de poesia, ou ainda, na criação pessoal, de modo que se desenvolva, por meio de tais ações, a construção da alteridade, em si e em relação aos outros.


LEITORES DENTRO E FORA DE TERRA SONÂMBULA, DE MIA COUTO

 

Anna Carolina Legroski


Linha de pesquisa: Literatura e outras linguagens
Orientador: Prof. Dr. Antonio Nery

Palavras-chave: Literatura Africana, Leitura, Leitor modelo, Leitor empírico, 

A partir do século XVIII, com o desuso da figura do mecenas, o leitor, esse ilustre desconhecido, começou a ser parte das preocupações dos escritores e dos editores de literatura (Todorov, 2011). Porém, estudos mais sistemáticos a respeito de como a obra literária agiria e seria compreendida por esse ser complexo e pouco definível começaram a ser delineados apenas no século XX, a partir da década de 70, com nomes como Hans Robert Jauss, W. Iser e de Umberto Eco (Jouve, 2002).
Embora esses nomes sigam abordagens teóricas diversas, principalmente no que tange o modelo de leitor, parecem haver pontos de contatos importantes no que diz respeito ao processo da leitura pelo qual passam os leitores estudados, como a apreensão da obra literária, que é vista como um processo comunicativo complexo que é iniciado antes mesmo do livro ser aberto, pois envolve uma série de suposições e de antecipações que giram em torno de um horizonte de expectativa construída a partir de uma série de fatores extratextuais que serão confirmados ou rechaçados à medida em que a leitura avança.
Parece, portanto, que há concordância entre os teóricos de que os textos necessitam que haja um leitor para que eles existam por completo, ao possuírem uma estrutura lacunar que necessita ser preenchida e, por assim dizer, terminada, mesmo que momentaneamente, pelo leitor. Desta forma, fica estabelecida uma união tríplice entre autor, obra e leitor que é indissolúvel, porque a existência de um é condicionada a das outras partes.
Uma narrativa que existe graças a essa questão da criação de horizontes de expectativas, prática leitora e processo de averiguação e teste de hipóteses é o romance Terra Sonâmbula, do escritor moçambicano Mia Couto, publicado pela primeira vez em 1992. Nele, dois personagens – o jovem Muiduinga e o velho Tuahir – fogem da guerra civil de Moçambique a pé e, em sua fuga, entre os destroços de um ônibus incinerado, encontram manuscritos de alguém chamado Kindzu. Entre seus dias, o jovem lê trechos do diário – que são recheados de realismo fantástico – e os dois se permeiam da trama mágica.
Desta forma, nas figuras da criança e do velho, teríamos receptores ficcionais de uma narrativa tão ficcional quanto, contada pelas palavras de Kindzu, que assume a figura do contador de histórias – figura emblemática no imaginário de diversas nações africanas. Além disso, como aponta Leite (2013, p. 59), cada um dos narradores do texto dá voz a outros narradores, secundários, pois todos têm histórias a narrar, uma vez que necessitam desse ato para firmarem sua existência enquanto indivíduos no plano da narração.
O poder narrativo expande-se ainda mais quando passamos a considerar que, em Terra Sonâmbula,
“as personagens vivem das histórias que contam, existem porque  têm uma narrativa a partilhar, uma experiência de vida um ensinamento, figurado ou não. A personagem é uma história virtual, que é a história da sua vida. Existem mediante a sua capacidade fabular, o seu testemunho; mais do que um ser, com psicologia, é potencialmente lugar narrativo do encaixe. As muitas narrativas encaixadas, das diversas personagens, servem de argumentos à narrativa englobante.” (LEITE, 2013, p. 72)

Pode-se afirmar, portanto, que a força desse livro reside nas múltiplas histórias encaixadas e, o ato da leitura, nesse caso, seria acrescido ainda mais de significação, pois ele seria, de certa forma, duplo – a narrativa de Kindzu e a narrativa da história de Muidinga e Tuahir – e, por isso, duplamente criador – gesta os dois universos e outorga existência a todos os personagens que precisam contar suas histórias e que atuariam como mundos narrativos, pois, enquanto transmitem uma experiência pessoal, têm capacidade pedagógica e crítica para uma comunidade (Leite, 2003).
Porém, Jouve (2002, p. 23) afirma que, no sentido espaço temporal, “o texto apresenta-se para o leitor fora da sua situação de origem”, ou seja, o texto está deslocado em relação ao leitor (e mesmo se não estivesse longe em espaço ou tempo, estaria em intenções do autor, pois essas conservam-se um mistério aos olhos do intérprete), e é sobre esse aspecto que Leite (2013) insiste ao analisar os personagens de Mia Couto, sobretudo no que diz respeito o uso da linguagem moçambicana.
A questão parece residir no fato de que, como aponta Leite (2013 p. 65, grifos da autora) “o narrador moçambicano nos foi habituando a uma certa estranheza de uma língua que não diz o que está a escrever, e que escreve mais do que pode dizer”, então, ao disfarçar os sentidos, esse narrador também poderia abrir sentidos diversos para públicos igualmente diversos.
Tendo postulado a questão da recepção para o público moçambicano como dentro dos limites da questão da identidade, memória e integração um sistema, Leite (2013) lança a provocação do que a leitura de Terra sonâmbula significará para um público alienígena (como ela qualifica em suas pesquisas). Segundo a autora:
“para um leitor não moçambicano, provavelmente, a generacidade do texto virá a ser  constituída menos pelo emissor, do que pelo receptor, e o texto servirá menos de suporte à manifestação das intenções genéricas autorais, do que de pedra de toque às interpretações genéricas dos receptores” (LEITE, 2012, p. 63)
Para a pesquisadora, uma leitura feita por um público alienígena seria baseada sobre o horizonte de expectativa desse leitor sobre seu conhecimento de mundo e não sobre o que o autor representa pois, provavelmente, ele não conheceria o contexto de produção deste texto, coisa que não aconteceria com um público moçambicano, por este conhecer a situação pela qual o país passa e passou.
Com base nessa discussão, podemos pensar, dentro de Terra Sonâmbula, a questão da prática leitora, em dois âmbitos: o intra-textual e o extra-texual. Em primeiro lugar, sendo uma obra composta de um sistema de engaste de narrativas, com personagens que se alimentam delas para existirem, ela oferece a possibilidade do estudo das relações de recepção entre os próprios personagens do texto, partindo do contexto em que se encontram, bem como de suas respostas a essa narrativa-engaste. Além disso, podemos pensar na obra e nos indícios que ela oferece (entrando na questão do intentio operis, de Eco (1992)) para um leitor que esteja fora do contexto moçambicano e que ignore as relações sociopolíticas em jogo no país.
No presente trabalho, pretendo explorar as possibilidades de leitura dentro da obra Terra sonâmbula, cotejando com a obra O outro pé  da sereia (2006), na qual instaura-se uma relação de leitura análoga à do primeiro romance do escritor moçambicano, tendo em vista as questões relativas ao leitor modelo e leitor empírico investigadas por Umberto Eco (1995, 1996 e 2015).


MUITOS MEDOS E UM OCEANO DE HESITAÇÕES: A REPRESENTAÇÃO DO PROCESSO DE APREENSÃO DO MUNDO ADULTO NA INFÂNCIA EM O OCEANO NO FIM DO CAMINHO DE NEIL GAIMAN

 

Arthur Aroha Kaminski da Silva


Linha de pesquisa: Literatura e outras linguagens
Orientador: Prof. Dr. Alexandre André Nodari
Debatedor: Prof. Dr. Clóvis Mendes Gruner (DEHIS/UFPR)

Palavras-chave: Neil Gaiman; Hesitação; Memória infantil; Formação; Identidade.

A pesquisa em andamento aqui apresentada tem como foco dois objetivos: 1) uma análise do romance O oceano no fim do caminho (2013), de Neil Gaiman, como uma representação do processo de apreensão dos sistemas e funcionamento do mundo social adulto por um indivíduo durante a infância; 2) uma investigação dos recursos técnicos e narrativos utilizados por Gaiman para representar este processo sob um clima de tensão, medo e, principalmente, hesitação, sentimento que, como sugere Tzvetan Todorov, é o que gera o efeito do fantástico na literatura.
O desdobramento do primeiro se dará a partir do atrelamento desta narrativa a discussões teóricas que abordam as relações entre realidade, ficção, cognição e poder, como meio de interpretar este processo de incorporação e posterior reprodução de valores e sistemas pelo qual todo indivíduo passa, visto que desde o seu nascimento é gradualmente incutido dos costumes que caracterizam os espaços sociais de que fará parte. Para este fim tomou-se como ponto de partida as teorias de Pierre Bourdieu sobre a rede de poderes invisíveis que conformam as relações na sociedade, como inspiração para o desenvolvimento de um conceito que defina o processo que proponho visualizarmos na obra de Gaiman. A esta elaboração pretende-se somar ideias de outros autores, como a teoria de Jean Piaget sobre o desenvolvimento cognitivo humano, ou as de Sigmund Freud a respeito do inquietante, do mal-estar na civilização e das relações entre o familiar e o estranho. Tais questões, creio, mostrar-se-ão ricas opções de associação para nos auxiliar na interpretação deste processo de incorporação da vida adulta pelo infante. Ademais, os conceitos contidos nas obras destes teóricos poderão servir, a qualquer momento, como ponte para a investigação em que consiste o segundo objetivo desta dissertação. Que se baseará, majoritariamente, na proposta de Todorov de que a hesitação – entre o real e o fantasioso, o crível e o não crível, o natural e o antinatural – é a força geradora do fantástico no âmbito literário, para averiguar de que estratégias e técnicas Neil Gaiman se vale em sua narrativa para induzir a manutenção deste sentimento no leitor.
O oceano no fim do caminho é composto pelas divagações do protagonista em suas próprias memórias durante uma visita à cidade em que viveu quando criança. Este personagem nunca nomeado acumula também a função de narrador, e é através do simulacro de seu fluxo de consciência que acompanhamos a sequência de lembranças – por vezes aparentemente fantasiosas – que surgem conforme revê pessoas e locais que marcaram aquele primeiro período de sua vida. A narrativa principal começa ao relembrar que, quando menino, um inquilino da família se suicidou após perder tudo em apostas. Esta morte (supostamente) permitiu que Skarthach – um ser sobrenatural – acessasse nosso mundo, procurando “ajudar” seus habitantes lhes deixando dinheiro de maneiras desagradáveis. Com a ajuda de sua vizinha Lettie Hempstock – que ele acreditava ser uma bruxa –, encontrou o ser, que acabou inserindo um portal extradimensional no garoto através de uma worm em seu pé, assim adentrando definitivamente nosso mundo na forma de Ursula, a babá que seduz sua família enquanto o menino se isola com medo. Após confrontamentos com seu pai por causa da babá, o garoto foge para o sítio das Hempstock, que convocam os “hunger birds” – entidades que comem o que está onde não deveria – ao nosso mundo. Eles consomem Ursula, mas também almejam o menino transmutado em portal. Para evitar sua morte, Lettie os afugenta ao custo de sua própria vida, e é depositada pelas outras Hempstock no fundo do lago do sítio, que defendem ser um Oceano que comporta a compreensão do todo. Lá Lettie permaneceria até que se regenerasse, e o protagonista só recordaria destes eventos quando próximo dele estivesse.
É o reencontro de um indivíduo com seus primeiros contatos com questões como confiança, amizade, infidelidade, dificuldades econômicas e morte. Com as situações que o auxiliaram a moldar seu modo de encarar o mundo. Esta simulação do funcionamento da memória, da rememoração de acontecimentos longínquos temporalmente, portanto já nebulosos ou confusos, é a escolha técnica que permite a manutenção da hesitação como sentimento predominante no livro. Se o protagonista, como ocorre nesta obra, admite não conseguir discernir o que de fato ocorreu do que sua imaginativa mente infantil pode ter fantasiado, ele induz o leitor ao estado de dúvida. Baseando-se em algo similar às premissas piagetianas – ou no simulacro adulto do que é a infância, como sugere Todorov – de que a criança não distingue o mundo físico do psíquico com clareza e/ou não concebe uma realidade da qual não faça parte, insinua que a memória deste narrador não é um ambiente fiável, pois não é possível delimitar com exatidão uma fronteira entre realidade e ficção.
A inserção de elementos fantásticos amedrontadores nessas memórias todavia faz o leitor, ao mesmo tempo em que duvida do relato, criar empatia pelo protagonista: o induz a imaginar que fantasias poderia também ter criado para fugir ou justificar terrores reais como o suicídio de um morador de sua casa, o afogamento da melhor amiga, ou uma experiência de quase morte pelas mãos do próprio pai, eventos pelos quais o narrador sugere ter passado. A tangibilidade do motivo de criação da fantasia reforça a dúvida sobre de que forma aquelas memórias devem ser encaradas. Decisão que cabe única e exclusivamente a cada leitor, visto que o livro se fecha sob qualquer uma das duas possibilidades de leitura da história: a) como ocorrida dentro dos limites do que consideramos natural, de forma que todas as inserções sobrenaturais advém somente da imaginação do infante trabalhando como válvula de escape; ou b) como ocorrida em um universo onde o que nos parece antinatural ou mágico pode ocorrer. É na hesitação entre as duas opções que reside a manutenção da tensão principal do livro, da qual o narrador (e talvez o leitor) nunca se livra. É onde – diria Todorov – reside o fantástico.
As memórias específicas narradas pelo protagonista abordam, entretanto, não apenas eventos de morte ou violência como os acima citados. Mas também situações que podem soar mais corriqueiras, como rejeição social, infidelidade, e falta de dinheiro. Estes episódios parecem ordinários, contudo, pela recorrência ao longo da vida: a repetição é que torna um comportamento ou situação familiares – e até a violência e morte podem se tornar triviais. Para um curumim, então, nenhum destes acontecimentos é usual e o mundo social é um universo desconhecido a ser desbravado. A visão crua da criança é um rico decalque da sociedade ocidental contemporânea. Isso faz com que a temática do livro de Gaiman, a (simulação da) memória infantil, seja não apenas a força mantenedora do clima de hesitação, como também a motriz que gera a representação do processo pelo qual o indivíduo molda suas reações às características da vida em sociedade e, por conseguinte, se permite preparar e esculpir para sua inserção nos mecanismos do espaço social.
Este processo é representado através das relações do protagonista com as personagens que teve como referência primeira do espaço social em que se inseria. A convivência, ensinamentos e exemplos destes agentes, e os cenários que estes meios sociais produzem, por si ou pela sua sobreposição com outros campos, formariam o conjunto de informações que o protagonista possuía para criar ou se encaixar numa “função de membro efetivo da sociedade”. E aqui é que proporei o paralelo com algumas teorias de Bourdieu para iniciar o desenvolvimento de um conceito que exprima este processo de formação que enxergo no Oceano no fim do caminho, sem, entretanto, criar amarrações com os conceitos bourdieusianos. Também é a partir deste ponto que pretendo relacionar as proposições de Freud às de Bourdieu, visto que enquanto este sugere que a incorporação de um habitus pode gerar bem estar – pela sensação de encontro de um desígnio para a existência pelo indivíduo, que sente estar no “seu lugar” –, Freud reporta o mal-estar criado pela dicotomia entre os impulsos pulsionais individuais e a cultura. Cruzamento que considero pertinente visto que o protagonista de O Oceano no fim do caminho reflete sobre seu bem e mal estar em sua condição atual – adulto – comparativamente à anterior – criança. Ainda neste ponto, penso, pode adentrar esta pluralidade de conexões a contribuição de Stuart Hall para a interpretação do processo e efeitos da fragmentação da identidade nos indivíduos pós-modernos. Que assumem simultaneamente múltiplas identidades dentro de um mesmo contexto cultural, podendo hipoteticamente atuar enquanto agentes sociais em diferentes campos e lutas simbólicas – e aqui voltamos a conceitos bourdieusianos – ao mesmo tempo.
Estas diretrizes quando desenvolvidas formarão, estima-se, o corpus principal da dissertação a que esta pesquisa se destina. Sempre com o intuito de, a partir destas concatenações teóricas, interpretar e conceituar originalmente o processo que vejo representado em O oceano no fim do caminho. Valorizando o exercício do escritor (adulto) em tentar, através da literatura fantástica, recuperar a forma do pensamento infantil que, afinal, ainda está nele. Fato que conecta os objetivos primeiros desta pesquisa através da hipótese freudiana da sobrevivência da criança no adulto e seu desvelamento pela matéria artística.


QUADROS PROVINCIANOS: A OBRA DE RODRIGO JÚNIOR

 

Claudecir de Oliveira Rocha


Linha: Literatura, história e crítica
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado
Debatedor: Prof. Dr. Luis Gonçales Bueno de Camargo

Palavras-chave: literatura paranaense; poesia paranaense; modernismo paranaense.

O objetivo dessa tese é reunir a obra do autor paranaense conhecido como Rodrigo Júnior(1887-1964), pseudônimo de João Baptista Carvalho de Oliveira. Hoje, um desconhecido por muitos curitibanos, mas que já foi, como autor, protagonista da literatura paranaense durante pelo menos 50 anos. Influenciou três gerações de escritores, poetas e jornalistas, como Dalton Trevisan, Helena Kolody, Colombo de Sousa, Octávio de Sá Barreto, Euclides Bandeira, Serafim França, Raul Gomes, entre outros. Era farmacêutico como seu pai, atuando alguns anos nesse ramo, mas não deixava de incentivar os jovens que apareciam quase todos os dias na sua farmácia pedindo conselhos sobre suas produções literárias, conselhos nem sempre favoráveis a exemplo dos primeiros livros de poesia do jovem Dalton Trevisan.
Deixou uma obra gigantesca, publicou onze livros de poesia e um romance, mas também deixou pelo menos cerca de dezoito livros em prelo, entre romances, novelas, livros de contos e crônicas, de poesia, de ensaios e crítica literária e milhares de escritos dispersos em jornais e revistas, já que também atuava como jornalista e editor. Como a atividade da escrita era seu objetivo de vida e dada a dimensão do que deixou escrito, não é exagero afirmar que ele foi o maior literato paranaense. Ficou conhecido principalmente como poeta devido a qualidade dos seus versos, era cultor das formas fixas poéticas como o soneto, mas também escreveu muitos poemas em versos livres. Era perfeccionista na poesia, buscava corrigir constantemente seus escritos, resultando, às vezes, em até quatro versões para um mesmo poema. Sua grande contribuição na poesia é o tipo de linguagem que ele vai recorrer, uma linguagem simples, objetiva e realista abordando temas comuns do cotidiano, das relações humanas, da paisagem urbana e rural. Às vezes buscando no romantismo a idealização do amor, do naturalismo, mas, ao mesmo tempo, buscando uma linguagem mais realista, mais moderna, mais ácida e satírica quando criticava o comportamento e costumes locais.
Seu primeiro livro Estrela d’Alva, foi lançado em 1905, e, a partir dessa publicação, não parou mais de escrever. Seguiu-se: Torre de Babel, de 1906; Quando Floresce o Amor, de 1908, 1922; Cânticos e Baladas, de 1913; Sonatinas Amorosas, de 1922; Pela Noite da Vida, 1923; Um Caso Fatal, de 1926; Juvenília, de 1939; Flâmulas ao Vento; 1940; Paisagem Modernista, 1941; Palavras, leva-as o Vento (como João de Curitiba), de 1947 e Sombras Chinesas, de 1948. Organizou duas antologias de poemas paranaenses, Antologia Paranaense (com Alcibíades Plaisant), 1938 e Sonetos do Paraná(com Léo Júnior), de 1953 e também criou e editou várias revistas literárias em Curitiba.
Criou várias personas dentro da sua produção literária, usando de inúmeros pseudônimos, cerca de cinquenta, com nomes, às vezes, um pouco ridículos como Ferrãozinho, Dr. Arrocho, Dr. Peroba, Dr. Penetra, Pequeno Polegar, João de Curitiba, General Perna-de-Pau, Coronel Pararaca, Barão da Flor de Alface e tantos outros. Cada um desses era dedicado a um estilo de texto e publicado em jornais de tendências diferentes, o que revela como era consciente da sua obra. Algumas vezes, publicava o mesmo texto com pseudônimos diferentes, de qualquer forma, a escolha não era tão aleatória como parece ser. Geralmente o bom moço era revelado pelo pseudônimo Rodrigo Júnior e a maioria dos outros pseudônimos era para atender suas facetas satíricas, críticas e humorísticas, essas, influenciadas certamente por Emílio de Menezes, Catulle Mendès e Francisco Tetilla.
Aproveitou um pouco da belle époque no Rio de Janeiro quando lá esteve cursando a faculdade de Odontologia e de Farmácia, e viveu a tardia e pequena belle époque curitibana na década de 20, momento em que escrevia para as moças apaixonadas, para as crianças, para os críticos, para os revolucionários republicanos, para os saudosistas, para os regionalistas e, principalmente, para a “alta” sociedade curitibana. Não é demais dizer que foi o autor que mais acumulou amigos, e era o mais prestigiado, mais requisitado nos salões e nas festas, apesar da sua timidez nas relações amorosas, preferindo a escrita como compensação.
Assim, ao longo dos seus 60 anos de atividade literária e jornalística, Rodrigo Junior viu as transformações da cidade de Curitiba, os usos e os costumes da região urbana e das regiões periféricas, mas não se prendeu às maravilhas do progresso, como Charles Baudelaire via as transformações em Paris no século XIX, o mundo novo soterrando o velho, também não se entusiasmava com todas aquelas transformações urbanas que ocorriam na ainda pequena cidade paranaense. Via na simplicidade do bucolismo e no naturalismo uma verdade poética mais interessante do que nesse mundo que surgia aos seus pés, apesar de ser um poeta urbano, apostava num realismo de fugere urbem como um Cesário Verde, um Eça de Queirós do livro As Cidades e as Serras, ou ainda mais ideológico como Henry Thoreau e Rousseau. Por isso a referência do título dessa tese, Quadros Provincianos, aos poemas da seção “Quadros Parisienses”, de As Flores do Mal, de Baudelaire, para perceber na obra de Rodrigo Junior como aliava a ideia de perceber o progresso, as belezas da cidade e ao mesmo tempo criticar o rumo que isso estava tomando. A diferença da visão de Rodrigo da de Baudelaire, é um provincianismo latente, um saudosismo, um desejo de recuperar algo perdido, uma Curitiba perdida.
Diferentemente dos simbolistas, que vislumbravam a ideia de poesia, de arte como algo que expressasse a espiritualidade, o metafísico, o transcendente e o sublime, Rodrigo foi o responsável, pelo menos no Paraná, por ter incorporado uma linguagem mais moderna e realista ao soneto e tornou-o molde para poemas mais prosaico nos quais criava as suas mais disparatadas investidas poéticas. Também, pode-se dizer que o uso do soneto prosaico e a incorporação de temas cotidianos foi a causa da desmistificação classicista dos simbolistas e parnasianos. Principalmente os sonetos humorísticos que enfeitavam as revistas literárias de Curitiba da época como a O Olho da Rua e a A Bomba. Essas brincadeiras com sonetos demonstram como a maioria dos poetas dominavam essas técnicas poéticas, mas, por outro lado, não conseguiam avançar no verso livre.
Na prosa, foi mais audacioso do que talentoso, produziu muito, mas pouca coisa realmente de qualidade literária. Escreveu contos, crônicas, novelas, romances, ensaios e crítica literária. Boa parte dos seus contos e crônicas são humorísticos, influenciados por Catulle Mendés, o qual traduziu bastante. Muitas vezes transparece uma escrita apressada, descuidada, sem uma reescrita que buscasse o valor de obra de arte, prezando mais pela linguagem jornalística e efêmera. Talvez o que chame mais atenção é sua linguagem moderna, objetiva, simples, sem floreios, falando de temas do cotidiano curitibano, das festas, das relações sociais, da vida boêmia.
Nos romances, que são antes pequenas novelas, do mesmo modo, trazem não é só a linguagem simples e objetiva, mas também a ideia de retratar o cotidiano, as relações sociais entre ricos e pobres, entre os nativos e os imigrantes, esses que viu chegarem, e, talvez foi um dos primeiros escritores a inserir personagens imigrantes nos seus textos, figurando em alguns, protagonistas em outros como a novela Rabo-de-tatu. Fora esse, destacam-se A Herança, folhetim publicado no jornal A Notícia em 1906, Asa de Corvo, publicado na revista O Olho da Rua, Dr. Malheiros, Aventuras do Doutor Saúde (com Aluísio França), 1906 e Um Caso Fatal, 1926. Essa última, parte da coleção “A Novela Mensal” criada pelo próprio Rodrigo Junior e seu amigo Octávio de Sá Barreto, coleção conhecida como o “projeto mais arrojado da literatura paranaense” que se propunha a lançar novelas de vários estilos, com qualidade de edição e preço popular, visando popularizar o gênero entre os leitores locais. A coleção chegou a lançar sete romances/novelas, deixando oito projetos que ficaram apenas na promessa.
Escreveu alguns ensaios e crítica literária. Na crítica quase sempre analisava obras produzidas pelos seus amigos, ressaltava a importância de cada uma delas para a construção da literatura paranaense, sempre numa análise superficial, lisonjeadora e bajuladora. Raras vezes que foi polêmico, como ao criticar a alienação dos simbolistas, quando criticou simbolismo de Emiliano Perneta, mesmo que o admirasse, ou quando travou uma polêmica com o poeta Tasso da Silveira ao criticar a poesia do seu pai Silveira Neto.
Rodrigo Júnior foi, de certa maneira, responsável por um “atraso” na evolução da literatura paranaense quando defendia as formas fixas da poesia, quando defendia um tipo de “literatura-sorriso” de Curitiba, mas, no entanto, foi importante na construção de uma linguagem mais simples, objetiva, realista e moderna, buscando enfatizar temas cotidianos, denunciando a superficialidade das relações sociais. Emílio de Menezes quando esteve certa vez visitando Curitiba, ficou entusiasmado com os poemas do Rodrigo Júnior, convidando-o para ir prontamente ao Rio de Janeiro para que ganhasse destaque nacional. Rodrigo não aceitou, e Emílio, com uma flecha certeira profética, disse que ele iria morrer desconhecido na sua própria terra. Se Curitiba era muito pequena para Emiliano Perneta, Rodrigo Junior tornou-a grande demais para si mesmo.


JOSEFINA PLÁ E A LITERATURA BRASILEIRA: RECUPERAÇÃO DE ENSAIOS DE CRÍTICA LITERÁRIA PUBLICADOS EM LA TRIBUNA DE ASSUNÇÃO EM 1952

 

Daiane Pereira Rodrigues


Linha de pesquisa: literatura, história e crítica
Orientador: Prof. Dr. Luís Gonçales Bueno de Camargo
Debatedora: Profa. Dra. Josele Bucco Coelho


Palavras-chave: literatura paraguaia, Josefina Plá, periódicos, arquivo, ensaio

             O objetivo dessa dissertação é resgatar parte da produção crítica de Josefina Plá que foi publicada no jornal La Tribuna em 1952. Neste primeiro momento, devido à necessidade de limitação do corpus e adequação à área de estudos pretendida, me concentrarei nos ensaios sobre literatura, publicados em 1952. Trata-se de uma série de textos dedicados à literatura brasileira que se intitulou Interpretando al Brasil. Além de contribuir com um antigo projeto paraguaio[7] de publicação das obras completas da autora, acredita-se que esses textos podem, potencialmente, contribuir para a historiografia da crítica literária brasileira e latino-americana.
O corpus atual consiste nos textos publicados entre junho e novembro de 1952, que levam os subtítulos de “Brasil, avanzada y esparanza”, que consiste em dois textos sobre a obra de Gilberto Freyre; “El Brasil y sus poetas”,  “La poesia brasileña” e “Poetas brasileños”, que totalizam 12 textos sobre poesia; e “La novela brasileña” que formam um conjunto de 11 textos sobreo  romance, totalizando 25 ensaios.
Publicados em um jornal de grande circulação, os ensaios de Plá sobre literatura brasileira parecem ter o objetivo de dar a conhecer a literatura do país oferecendo um grande número de autores e obras, sem desvinculá-los de seu contexto histórico. A autora faz uma abordagem historiográfica, partindo de Gilberto Freyre para estabelecer as singularidades do Brasil, mas mantendo uma linha cronológica do romantismo até seus contemporâneos. A lista de autores citados e analisados por Plá é bastante ampla, entre eles estão: Gilberto Freyre, Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, Basílio da Gama, Santa Rita Durão, Machado de Assis, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Alberto Oliveira, Cruz e Souza, Mario Pederneira, Bernardino da Costa Lopes, Alphonsus de Guimarães, Graça Aranha, Jorge de Lima, Josalina Coelho Lisboa, Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Augusto Frederico Schimitdt, Mario de Andrade, Carlos Drumond de Andrade, Oswald de Andrade, Gilka Machado, Ronald de Carvalho, José de Alencar, Visconde de Taunay, Couto de Magalhães, Franklin Távora, Raquel de Queiróz, Américo de Almeida, José Lins do Rego, Jorge Amado, Amado Fontes, Graciliano Ramos, Cordeiro de Andrade, Marques Rebelo, Monteiro Lobato, Manuel Antonio de Almeida, Raúl Pompeia, Euclides da Cunha, Aluízio Azevedo, José Lins do Rego e Érico Veríssimo.
É interessante observar que, nos dois textos em que menciona Freyre, Plá analisa o contexto latino-americano com uma perspectiva crítica dos processos de colonização, embora reconheça sua importância para a constituição do que significa ser americano. Plá fala de mestiçagem, reivindica a figura do negro e desmistifica a ideia de europeu como raça pura. Muitas de suas afirmações parecem já conter a essência do que seriam décadas depois os Estudos Culturais e Decoloniais nos estudos literários, e dizem muito sobre a identidade latino-americana, preocupação presente em vários ensaístas desde Facundo até Canclini.
Além do processo de resgate, pretende-se a partir desses textos dar início a uma pesquisa no arquivo da escritora, o que certamente deixará pistas para trabalhos futuros, na minha atividade como professora pesquisadora da Universidad del Norte em Assunção ou até mesmo para um futuro processo de doutoramento. O arquivo deixado por Plá consiste no acervo artístico e documental do Centro Cultural da España Juan de Salazar (CCEJS), doado pela escritora em vida e que começou a ser organizado, catalogado e devidamente armazenado somente em 2012. Hoje parte desse acervo forma o espaço de exposição Josefina y Julián no local do CCEJS em Assunção. Outra parte do arquivo, a biblioteca de Plá, com grande número de manuscritos, cartas e documentos, foi doado também em vida e hoje pertence à Universidade Católica de Assunção.   
Mas, para que seja importante esse arquivo, primeiro faz-se necessário localizar a escritora e sua obra na historiografia literária do Paraguai, o que será abordado em um dos primeiros capítulos da dissertação. Josefina Plá nasceu na Espanha em 1903. Em 1924 conheceu em Villajoyosa, Alicante, o artista paraguaio Julián de la Herrería (pseudônimo de Andrés Campos Cervera). Dois anos depois, em 1926, já casada com ele, foi morar no Paraguai, fato fundamental para o seu desenvolvimento intelectual e artístico. Desde o momento de sua chegada ao país latino-americano, ela colaborou nos principais jornais, tanto como jornalista quanto como poetisa. Também acompanhou o marido em seu trabalho como artista plástico, o que resultou em uma série de cerâmicas e gravuras com motivos indígenas e populares.
            Em 1934 o casal foi à Espanha, período em que a artista continuou colaborando nos jornais e revistas com poemas, ensaios e outros textos literários. Em 1938, Josefina voltaria sozinha desta viagem, devido à morte prematura do marido em plena Guerra Civil Espanhola no ano anterior. Viúva, em um país estrangeiro, Plá começa um arraigado labor intelectual, o que segundo Fernández (2015) é uma tentativa de adaptação e busca do estabelecimento de um espaço e uma identidade em meio a uma realidade estrangeira e mestiça. É a partir desta época que Josefina Plá junto com o sobrinho Hérib Campos Cervera renova as estéticas literárias e artísticas, começando o processo de modernização das artes no país através de movimentos como o Grupo Arte Nuevo nas artes plásticas e o Grupo Vy’a Raity na literatura. É do contato com essa produção pós-vanguardista que surgem as novas tendências na literatura e nas artes, o que será de grande influencia para poetas como Augusto Roa Bastos, que considerava Josefina Plá sua maestra.
Josefina Plá dedicou toda sua vida à literatura e à análise artística, social e histórica do Paraguai, além de traduzir e analisar outras literaturas, publicou ensaios sobre arte, sociedade, história, literatura, e outros temas. O conjunto de sua obra forma uma importante crítica sobre temas como arte e costumes indígenas; arte, literatura e cultura paraguaias; influencia dos espanhóis na cultura do país, assim como a influencia negra e de outros grupos de imigrantes; bilingüismo; teatro... Enfim, um vasto campo de temas e conhecimentos do âmbito nacional e internacional. Algumas de suas principais colaborações críticas são Apuntes para una historia de la cultura paraguaya (1967), Cuatro siglos de teatro en Paraguay (1990/1), El barroco hispano-guaraní (1975), El espíritu del fuego (1977), El grabado en el Paraguay (1962), Literatura Paraguaya del siglo XX (1972), Bilingüismo y tercera lengua en el Paraguay (1975), Hermano negro (1972).
            Além do extenso trabalho crítico, Plá possui uma importante produção literária em poesia, narrativa e teatro. Sabe-se que muito do que produziu Josefina Plá permanece inédito em volume nas prateleiras da hemeroteca da Biblioteca Nacional de Assunção, já que nos últimos anos de sua vida ela se dedicou principalmente a publicar nos jornais e nunca reuniu esses textos em forma de livro. Possivelmente muito se perdeu em jornais e revistas mais antigos que já não podem ser encontrados, e muitos outros textos - segundo a própria autora em entrevista a Marylin Godoy (1999) - jamais foram publicados, e se perderam para sempre.


ASSASSINAS E PROTETORAS DA CASA PATRIARCAL

 

Gabriela Szabo


Linha de pesquisa: Literatura, história e crítica
Orientador: Prof. Dr. Luis G. Bueno de Camargo
Debatedor: Prof.ª Dra. Joyce Muzzi (IFPR)

Palavras-chave: Mulher; Família patriarcal; Crítica Literária

Nesse texto o objetivo é expor as mudanças que foram realizadas no projeto de pesquisa inicial e os motivos que guiaram essas transformações, sem constrangimento sobre os equívocos e até mesmo preconceitos que estavam inseridos no projeto inicial, pois esses pontos falhos ocorreram não somente nesse trabalho, mas já foram cometidos em muitos textos importantes da historiografia literária.
A proposta inicial era estudar três autores que colocaram personagens se movendo no raio de uma força centralizadora e autoritária que é a figura do patriarca, são os romances A Menina Morta (1954), de Cornélio Penna, Crônica da Casa Assassinada (1959) de Lúcio Cardoso e Lavoura Arcaica (1975) de Raduan Nassar. Nesses romances o ambiente da casa-grande e o universo rural, são descritos com riqueza de detalhes, porém, diferente do que se possa pensar num primeiro momento, não encontramos uma visão idílica do campo, longe disso, a casa-grande é hostil e severa como um castelo medieval. Nas paredes dessas grandes fortalezas as marcas da opressão estão por todos os lados; o ambiente doméstico é o universo predominantemente feminino, mas não para acolhimento e sim como prisão. Mas a estabilidade desse clima de opressão é abalado, as colunas dessas casas-grandes estremecem, e a força desencadeadora dessas mudanças vem das personagens femininas, elas são as protagonistas da corrosão do patriarcalismo nesses romances. Ao longo do processo de maturação do projeto mais uma obra foi acrescentada devido à complexidade com que as mulheres são desenhadas e por também serem colocadas como elemento corrosivo dos valores patriarcais, trata-se de Corpo de Baile (1956) de Guimarães Rosa, obra na qual o autor parece apresentar um espetáculo de dança onde as bailarinas representam diferentes papéis e ditam o ritmo do espetáculo. A proposta inicial, portanto, era a de analisar as personagens femininas que são representadas nessas quatro obras e a luta que travam para romper com os valores que as aprisionam. A princípio todas essas personagens ofereciam para nós um painel diversificado e completo em relação às imagens de mulheres do período histórico que se pretendia emoldurar e para organizar a análise as enquadramos nos seguintes tipos de mulheres - a mulher negra, a mãe amante, as avós paternas, as prostitutas, as abolicionistas e as operárias. O enquadramento dessas personagens passou a segurança de um método de pesquisa preciso, porém, conforme as leituras evoluíam, esses tipos de mulheres revelaram ser um sintoma da limitação de papéis sociais que as mulheres podem desempenhar, não somente na ficção como também na realidade e que foi tomada por nós sem o devido cuidado. Dessa forma, essa suposta organização se tornou também um questionamento a ser resolvido ao longo do trabalho, ela não foi excluída, é importante frisar, não deixaremos de utilizar essas classificações dos papéis femininos, mas a olharemos de forma crítica para perceber a maneira como os autores construíram as personagens dos romances. Outra questão que se levantou foi o fato de compor o corpus da pesquisa apenas com autores masculinos, uma voz ao fundo passou a perturbar, era a voz da mulher sem voz, e uma questão inicialmente vista como de pouco relevância foi se tornando uma preocupação: como falar de mulheres apenas tomando como fonte obras de autores, ou melhor, como falar sobre a opressão feminina, sobre o silenciamento das personagens femininas e não permitir que as mulheres falem. Sem querer cometíamos um erro que é descrito por Zahidé Lupiaacci Muzart no artigo A questão do cânone de tomar a mulher apenas como objeto:
                      
A mulher, no século XIX, só entrou para a História da Literatura como objeto. É importante, para reverter o cânone, mostrar o que aconteceu, quando o objeto começou a falar. Para isso, além do resgate, da publicação dos textos, é preciso fazer reviver essas mulheres trazendo seus textos de volta aos leitores, criticando-os, contextualizando-os, comparandoos, entre si ou com os escritores homens, contribuindo para recolocá-las no seu lugar na História. Porém, na questão do resgate, devemos ter em mente que não se trata de uma substituição: os consagrados pelos esquecidos. Isso seria muito tolo. (MUZART, 1995, p.90)[8]

Uma vez inoculado essa inquietação não foi possível mais voltar e o timbre suave, quase nada, da voz feminina foi se tornando imperativo e exigiu igualdade e problematização, dessa forma também passaram a fazer parte desse estudo as obras de três autoras, Parque Industrial (1933), Cabra-cega (1954) de Lucia Miguel Pereira e por fim O Lustre (1946) de Clarice Lispector. Junto com a mudança de planos desse projeto, junto com as mulheres que entraram nessa pesquisa, entraram também alguns questionamentos que giram em torno da relação mulher e literatura: como as mulheres foram escritas pela literatura masculina, a exclusão das mulheres do cânone literário ocidental e as mulheres escritas por si mesmas.
É importante apontar que nesse trabalho não será nosso objetivo discutir e tentar responder se existe ou não escrita feminina, mas sim, por meio da análise das obras escritas por mulheres, expor a fragilidade dos critérios da historiografia literária que praticamente esqueceu a obra de Lucia Miguel Pereira e Patrícia Galvão, realizaremos assim um trabalho de recuperação. Será realizado também um trabalho de resignificação de obra, a aceitação da obra de Clarice Lispector pelos críticos é indiscutível, porém apenas pelo rótulo de escritora intimista, o que pretendemos analisar na obra O Lustre é o trabalho de pensar o Brasil, de denunciar as estruturas do patriarcalismo, assim como fazem Lucia Miguel Pereira em Cabra-cega e Pagu em Parque Industrial. A escrita feminina foi durante muito tempo rotulada como uma literatura menor, capaz apenas de falar sobre si. É como se a mulher fosse capaz apenas de representar sua vida intima, realizar uma narrativa contemplativa e utilizar uma linguagem imaginativa e incapaz de observar o mundo na qual está inserida, “o verdadeiramente humano”, o Universal. Esse discurso apenas fortaleceu a fala de críticos como Harold Bloom que consideram que o cânone deve ser composto por autores cuja obra é fruto de um empreendimento individual e de auto-suficiência e que dessa forma alcançaram em suas ficções a originalidade e ao mesmo tempo refletiram a tradição e por isso são merecedores da permanência. Para o crítico, questionar a hierarquia que o cânone literário propõe é uma atitude daqueles que fazem parte da “Escola do Ressentimento”.


A FICCIONALIDADE DE AS MINAS DE PRATA E O TEMPO HISTÓRICO DE JOSÉ DE ALENCAR

 

Geisa Mueller


Linha de pesquisa: Literatura, história e crítica.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Marilene Weinhardt.
Debatedor: Prof. Dr. Ewerton de Sá Kaviski (PUCPR).

Palavras-chave: José de Alencar; romance histórico; ironia.

Elaborada por princípios estéticos envolvendo a história romanesca, tendo em vista a teoria dos modos ficcionais formulada por Frye (1973) e, principalmente, pelo diálogo entre literatura e história, a prosa de ficção que mistura popular e erudito instaura o projeto literário de José de Alencar; também constituída pelo(s) Romantismo(s), a obra do escritor de O guarani conservou o mesmo princípio de estrutura da composição: o enredo romanesco permeado por uma pungente crítica social e política. Neste sentido, a reflexão sobre a aclimatação da língua portuguesa, aplicada na escritura dos romances, corresponde ao arranjo ficcional de um corpus poético e cultural oriundo do “corpo a corpo” do elemento humano com o elemento espacial/geográfico. Em outras palavras, na prosa de ficção alencarina, a “experiência do sentir” herderiana, que engendra o conceito de canções populares (Volkslieder), articula a poesia emanada pelo espaço com o estudo da linguagem da literatura brasileira. O conceito de Volkslieder resultou na criação de procedimentos expressivos em diferentes momentos do romantismo alemão, por exemplo, influenciou a compilação e a feitura dos contos populares (Volksmärchen) publicados pelos irmãos Grimm, trabalho cuja perspectiva estilística deve ser ressaltada na narrativa, dada a invenção ocorrida na tranposição oral para o suporte do livro (cf. SAFRANSKI, 2010). Procedimento similar foi realizado por Alencar ao restaurar trovas populares que consistiram nos elementos de composição de O sertanejo, já que incorporadas ao romance as trovas fundamentam a figuração da pujança do herói, do vigor do animal (o boi) e da reverberação da paisagem, assim como compõem, em algumas passagens, o timbre merencório do narrador que expõe um universo perdido cujas características podem ser (re)conhecidas pela memória elaborada no romance. Sobre o restauro do poema "O Rabicho da Geralda" – o escritor possuía cinco versões colhidas arduamente em diferentes localidades e com a ajuda de amigos – Alencar (1994) destaca a importância de preservar, na reescritura, o traço primitivo que caracteriza o “sentir” da poesia popular, motivo pelo qual verificamos a proximidade entre o pensamento de Johann Gottfried Herder e a pesquisa sobre poesia popular relatada nas cartas (publicadas pelo jornal O Globo em 1874) que antecipam a escritura de O sertanejo, pois Herder (cf. BARBOSA, 2009) acentua nas canções populares traços como a vitalidade e a inocência, sugerindo que tais predicados nada deixariam a desejar em relação à arte erudita. Sob tal aspecto, é através do escrutínio da poesia popular que José de Alencar percebe como se dava a relação do sertanejo com a terra, bem como as peculiaridades do ofício de vaqueiro, visto que, nas cartas, a poesia popular constituinte do folclore do sertão cearense, este ponteado pela criação de gado, é investigada por também conter a transformação da sintaxe e prosódia da língua portuguesa. Além disso, outro fator, que diz respeito ao entrelaçamento entre literatura e história na criação literária, corrobora o interesse do escritor pelo aspecto material da vida sertaneja, pois, em Como se deve escrever a história do Brasil (dissertação premiada pelo IHGB em 1847), Martius (1845) discorre sobre a elaboração de uma narrativa histórica centrada na constituição da brasilidade, já que o texto atribui importância ao historiador que conseguisse descrever a paisagem, retendo, na narrativa, as miudezas do cotidiano e os costumes das diferentes povoações. Pelo fato de o texto de Martius apresentar uma síntese das questões político-literárias do período de formação da literatura brasileira, concordamos com Weinhardt (1996), que aventa a possibilidade de a dissertação ter influenciado não só a produção romântica, como também o conjunto da literatura nacional. Partindo desse pressuposto, o corpus de nossa pesquisa contempla os romances históricos de José de Alencar, a saber, O guarani (1857); As minas de prata (1865-1866); O garatuja (1873); A guerra dos mascates (1873-1874), os dois últimos pertencentes às crônicas romanceadas intituladas “Alfarrábios”. No entanto, visando o propósito do debate a ser feito no “II Seminário de Teses e Dissertações em Andamento”, As minas de prata será o romance central deste estudo. Portanto, nosso primeiro movimento consistirá em pontuar como são caracterizadas em As minas de prata as premissas do modelo scottiano (a forma clássica do romance histórico) apontado pela estética marxista de Lukács (2011), ou seja, demonstrar o porquê As minas de prata é capaz de ombrear com os principais romances históricos da literatura mundial; logo, interessa-nos refletir sobre como a lenda das minas de prata da Bahia é atualizada conforme necessidades políticas e, consequentemente, percebida na criação de um romance brasileiro de capa e espada. Nesse sentido, a cobiça implicada no imaginário medieval, propagado por cronistas como Gabriel Soares e Padre Manuel da Nóbrega, ratifica o topos mais profícuo do romantismo brasileiro: a fabulação do meio natural. Isso significa que criação de mitopoéticas que constituem a paisagem e são por ela constituídas consiste em um recurso expressivo em que a paisagem figurada comporta tanto as imagens da tradição como os traços culturais que lhe são próprios. O segundo movimento pretende circunscrever a ironia do narrador alencarino e, sob esse aspecto, a pergunta a ser feita é: como o enredo romanesco engendra um narrador que sistematicamente faz remissão às convenções literárias ao mesmo tempo em que essas convenções são criadas no construto? Para a realização desse último movimento, o conceito de “paisagem-só-natureza”, de Flora Süssekind, será analisado sob a luz dos elementos romanescos, no intuito de indicar o que pertence ao âmbito da ficcionalidade e o que é derivado do tempo histórico de José de Alencar. Expostos os pontos que serão articulados neste trabalho, as considerações parciais debruçam-se sobre o verdadeiro manuscrito empregado pelo narrador alencarino: a sua própria ficção. Por esse motivo, o aspecto documental apontado por Süssekind (1990) não afeta a habilidade de ficcionista desse escritor, bem como não obnubila a ironia do narrador, razão pela qual gostaríamos de indicar, embora nossa leitura delimite a práxis da ironia romântica, um possível desdobramento desta pesquisa: explorar a expansão do paradigma romântico com que até então foi lida a obra de Alencar. Tal expansão parece erigir uma abertura da recepção crítica além do que a já realizada pela vertente do “romantismo crítico”, que tem os estudos de Boechat (2003) como norte. Essa outra perspectiva sugere que os romances de Alencar também podem ser lidos na chave realista, proposição que modaliza a forma como a obra de Alencar é percebida por Schwarz (2000), crítico que ainda orienta o raciocínio da maioria das apreciações efetuadas sobre os escritos alencarinos. A tese Romance e ironia: José de Alencar revisitado, de Ewerton de Sá Kaviski, defendida em 2016, e a tese de Luísa Marinho Antunes Palionelli (2004), esta trabalha especificamente com o romance histórico de José de Alencar, abordam a possibilidade de leitura na chave realista.


NO SUBSOLO, A IRONIA: EFEITOS DE SENTIDOS PROVOCADOS PELA IRONIA EM MEMÓRIAS DO SUBSOLO DE DOSTOIÉVSKI

 

Glauber Rezende Jacob Willrich


Linha de pesquisa: Literatura e outras linguagens
Orientador: Prof. Dr. Klaus Eggensperger
Debatedor: Geisa Mueller (doutorado)

Palavras-chave: Ironia, Estética da recepção, narratologia.

A ironia é comumente conhecida como a figura de linguagem em que se diz o contrário do que se quer dizer. A ambiguidade e os elementos opostos e contrários colocados em oposições simétricas parecem ser a marca fundamental dessa figura de linguagem. E, para que ela ocorra, é necessário que pelo menos dois interlocutores compartilhem de um mesmo contexto (seja ele cultural, social, de fala, de produção de discursos) previamente estabelecido, e que o ironista (no caso, o locutor) lance brechas e pistas para seu interlocutor a fim de decifrar tanto a mensagem irônica, ou antes, a intenção irônica, quanto a mensagem real. Embora estes pareçam ser os elementos básicos da estrutura da comunicação irônica (locutor, enunciador, contexto compartilhado) os objetivos de um locutor ao lançar mão desta figura de linguagem podem ser bastante distintos, da mesma forma que as consequências, ou antes, os efeitos de sentido provocados no receptor da mensagem irônica também podem ser bastante diversos: com a ironia podemos ir do riso ao ataque passando pela autodefesa.
Os primeiros registros do termo ironia (eironia) surgem na República de Platão. Lá, o filósofo grego parece aplicar o significado a algo como uma forma lisonjeira e abjeta de tapear as pessoas. Entretanto, é anteriormente em Sócrates que vemos o desenvolvimento do primeiro modelo de comportamento irônico, graças às técnicas desenvolvidas por este filósofo que consistia em transformar uma frase assertiva em interrogativa com a finalidade de propor ao interlocutor um desconhecimento ou provocar a ausência de determinada convicção em relação a determinado tema específico.
Em Aristóteles, por sua vez, o termo sofre uma evolução, e passa a designar um modo de comportamento do homem: Aristóteles classifica a eironia no sentido de simulação (simulatio) autodepreciativa, contendo a qualidade superior a seu oposto – a alazonia, ou dissimulação jactanciosa. A ironia, aqui, mais do que figura de retórica, é uma atitude do ser humano. Na tradição latina – particularmente em Cícero e Quintiliano – a ironia passa a ser considerada uma figura de retórica cujo objetivo era vencer o oponente em um debate. A partir daí, passando à era moderna, a ironia deriva então duas correntes distintas: a ironia retórica e a romântica.
A ironia romântica é comumente conhecida pela estratégia no qual o narrador, ou antes, o criador da obra, se distancia da mesma e revela sua efemeridade, seu caráter ficcional e provisório diante da realidade. Ela está relacionada a uma atitude filosófica cujas raízes estão na herança germânica, particularmente no idealismo alemão. É Schiller o autor da concepção que coloca a ironia como elemento que garante ao poeta a liberdade do espírito.
A ironia retórica é aquela comumente conhecida por se dizer o contrário do que se quer dizer. Ela é um sistema fechado, e tem a preocupação de revelar as incongruências de determinado objeto, mas ao mesmo tempo defender determinado ponto de vista diante da ambiguidade apresentada. Entretanto, é sabido que o locutor, ao lançar seu discurso com intenção irônica, não tem controle sobre a recepção do mesmo no interlocutor. É nesse sentido que a ironia pode ser perigosa, causar mal entendidos e provocar as pessoas. Há, portanto, no contexto da comunicação irônica, relações de carga afetiva estabelecidas entre os locutores.  Mais do que figura de linguagem, a ironia é também estratégia de argumentação e, porque não, uma prática persuasiva.
Linda Hutcheon (cf. Hutcheon, 2000) pensando em termos de carga afetiva da comunicação irônica discorre sobre o conceito de Arestas da Ironia: Para ela, pensando também nos efeitos de sentido que podem ocorrer com o interlocutor da mensagem irônica, o ironista, ao lançar mão da ironia em seu discurso lança também “arestas”, ou antes, “brechas” para que o interlocutor consiga captar o sentido da comunicação irônica. Essas “arestas”, por sua vez, se relacionam às funções ou efeitos de sentido que podem ser provocados no interlocutor, que podem ir desde o mais alto grua de desinteresse a um alto grau de simpatia e identificação com o interlocutor, passando por uma função lúdica e amigável, autoprotetora, atacante, distanciadora e mesmo opositora.
Pensar nos efeitos de sentidos que a ironia pode provocar na leitura de um texto literário constitui um material importante para pensar tanto na construção do texto e em sua arquitetura, quanto na recepção do mesmo. Neste caso, à estrutura básica “locutor-interlocutor-contexto”, devemos ter em mente as figuras do narrador, leitor e do contexto de realização da leitura. Evocamos, então, as propostas teóricas da estética da recepção, particularmente aquelas fundadas nos trabalhos de Jauss, Iser e Eco.
Umberto Eco (cf. Eco, 1994) nos mostra que o leitor precisa aceitar tacitamente um acordo ficcional, fingir que o que é narrado de fato aconteceu naquele mundo ficcional. Entretanto, quando temos um narrador que se utiliza da ironia, põe-se em cheque aquilo que está sendo narrado, deixando o leitor de certo modo desconfortável e exigindo dele uma participação ativa na construção do sentido do texto, ao mesmo tempo em que o deixa desconfiado das verdades aparentes narradas naquele plano que fora traçado com uma intenção ficcional. Em certo sentido é possível dizer, então, que a ironia desestabiliza um texto literário, põe em cheque certas verdades, e mesmo infere no processo de verossimilhança interna da obra.
Jauss, por sua vez, aponta para o fato de haver determinado efeito de imersão e ilusão estética provocado no ato da leitura de textos literários. Isso, se levarmos em conta de fato o acordo ficcional entre narrador e leitor. Entretanto, quando temos a ironia instaurada na tessitura narrativa, observamos que ela por vezes pode quebrar com esse efeito estético de imersão já que põe em cheque ao leitor as verdades ali narradas em questão.
Pensando em todas essas questões anteriormente apontadas, a proposta deste trabalho, então, será analisar o texto Memórias do Subsolo do escritor Russo Fiodór Dostoiévski à luz dessas questões, tendo em mente a mecânica da ironia, seu processo de funcionamento no ato de leitura, e tendo em mente o papel do leitor enquanto construtor dos sentidos do texto. É preciso levar em conta também as proposições teóricas de Bakhtin sobre a obra de Dostoiévski, particularmente aquelas que se referem à polifonia e ao dialogismo. Bakhtin nos mostra que todo discurso só ganha vida quando contrastado com outro discurso: todo discurso é orientado a, exige uma réplica. No caso do texto literário de Dostoiévski, a interlocução as vezes fica por conta do leitor: o narrador se dirige varias vezes ao leitor com o intuito de dialogar com ele, embora este não esteja presente de fato na narrativa. É aí que ocorre um “jogo do texto” nas palavras de Iser: o narrador, se utilizando da ironia, está consciente do que faz, e joga o tempo todo com o sentido a ser captado pelo leitor; e ainda assim, consegue contar uma história.
Além dessas considerações, como hipótese preliminar, apontamos para o fato de que o narrador de Memórias... se utiliza deveras da ironia com a aresta atacante e autoprotetora, e a ironia, neste caso, se liga à polifonia e mesmo ao dialogismo presente no texto literário como forma de manter em equilíbrio posições divergentes e paradoxais ao mesmo tempo, ajudando assim, na construção do texto literário. A ironia, nestes aspectos, funciona também como uma ferramenta dialética, que põe em equilibro partes aparentemente e simetricamente opostas entre si.


UM PROJETO NEOLIBERAL DE VASTAS EMOÇÕES E PENSAMENTOS IMPERFEITOS (1988)

 

Jéssica Caroline de Lima Círico


Linha de pesquisa: Literatura, História e Crítica
Orientador: Prof. Dr. Fernando Cerisara Gil (Orientador/UFPR)

Palavras-chave: Rubem Fonseca; Literatura; Regime Militar; Projeto Neoliberal

RESUMO: Diante do quadro político e econômico brasileiro das décadas de 1970 e 1980, período em que já é possível enxergar as consequências do regime de 1964, a Literatura, em especial o gênero romance, assiste a mudanças estruturais que refletem os resultados do fechamento político e do desenvolvimento capitalista que acelerou o processo de desigualdade social. Impossível não articular tais acontecimentos com as mudanças nas produções literárias da contemporaneidade. Sendo assim, a dissertação em curso propõe analisar na obra Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988), de Rubem Fonseca, o impacto das transformações do período em sua estrutura e conteúdo, bem como esclarecer ou ao menos refletir sobre o modo como a suposta “vitória” do regime e de seu “projeto neoliberal”[9] se concretizam na construção da narrativa e na popularização dos escritos do autor no período supracitado.

Passada a denúncia engajada de obras publicadas no decorrer do regime tais como Incidente em Antares (1970), de Érico Veríssimo, Os Tambores Silenciosos (1975), de Josué Guimarães, ambas marcadas por elementos da literatura fantástica para driblar a censura. Ou com a publicação de As Meninas (1972), de Lygia Fagundes Telles, em que o discurso polifônico intrinca a compreensão do texto, possibilitando que passe pelo crivo dos censores. Outras obras publicadas nos anos seguintes e com olhar distanciado dos acontecimentos da época tiveram a possibilidade de revisá-los por meio de informações disponibilizadas em textos jornalísticos e através de estudos idealizados com a finalidade de desvendar os eventos ocorridos. É por meio dessas ferramentas que narrativas como Tropical Sol da Liberdade (1988), de Ana Maria Machado, e Romance Sem Palavras (1999) de Carlos Heitor Cony, puderam explorar outros lados da ditadura: as hipocrisias, o falso heroísmo e a corrupção de indivíduos envolvidos com a luta revolucionária dos estudantes etc.
Em meio ao material fresco que surgia nas mídias e editoras, oferecendo grandes possibilidades de criação e de denúncia de um período crítico da história brasileira, a literatura teve seu espaço expandido dando lugar a narrativas de outra natureza, que se distanciam da vertente histórica e propõem diferentes reflexões, como é o caso de Avalovara (1973) de Osman Lins, que explora aspectos da metafísica, e Zero (1974) de Ignácio de Loyola Brandão, que constrói uma crítica bastante cética à crise política do momento. Dentre as produções de um período que expressa notadamente anarquia formal[10], as narrativas de Fonseca surgem como um dado antagônico, uma vez que elas, ainda que disponham de estruturas e discursos transgressores, os alinham a discursos selecionados que favorecem apenas um campo de visão da situação crítica do país. Para Luís Alberto Alves, o autor é um bom estrategista:

Rubem Fonseca foi desde sempre um estrategista da luta de classes. [...] entendo por estrategista alguém capaz de refletir, minuciosamente, sobre o campo literário, discernir as forças presentes e atuantes em seu interior e, por fim, elaborar um modo eficiente de intervenção, de sorte a alterar os protocolos literários em favor de suas posições políticas e estéticas. (ALVES, 2016, s/p)

Um dos pontos chave da análise reside em compreender o modo como a obra articula, em sua estrutura literária, considerada transgressora e crítica, pontos que corroboram o modelo econômico neoliberal periférico. É sutil a articulação que o autor faz entre a ideia de salvação econômica e social do país por vias neoliberais e uma estrutura em trajes excêntricos que parece vislumbrar uma crítica autêntica à violência do país. Ao utilizar a violência como elemento central de suas obras o faz sem mostrar suas causas basilares, resultado de uma sucessão de acontecimentos opressivos que remontam ao histórico autoritário nacional. Para compreender esses pontos sutis na estrutura e no conteúdo da obra Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos é necessário examinar o trajeto literário e pessoal do autor, visto que é possível identificar em suas escolhas certa conexão com o período violento causada pelas repressões advindas do Golpe Militar de 1964, assim como cotejar o conteúdo da obra com as circunstâncias que marcam o período de sua publicação.
O romance de Rubem Fonseca apresenta a história de um diretor de cinema que se envolve em instigantes aventuras ao gosto policial. Em meio a esse caos, o protagonista vivencia a angústia da recente morte de sua esposa e a ventura de uma proposta de trabalho que talvez pudesse ser a melhor de sua carreira como diretor de cinema: transpor para a linguagem cinematográfica a obra do literato russo Isaak Bábel. 
A análise, até o momento presente, se pauta nos estudos de Luís Alberto Alves, professor associado do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que motivou a leitura que está sendo proposta do corpus da pesquisa através do contato com alguns de seus textos. Da mesma forma dialogaremos com obras de autores como Antonio Candido e Silviano Santiago, para a relação entre literatura e sociedade; Tânia Pellegrini, para a análise das implicações midiáticas nas narrativas de Rubem Fonseca, especificamente de Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos; Jaime Ginzburg, Élio Gaspari, João Manuel Cardoso de Mello e Fernando A. Novais, para o entendimento dos eventos históricos em questão; Flora Sussekind e Linda Hutcheon, para questões literárias da contemporaneidade, dentre outros a serem adicionados no desenvolver da pesquisa. Ao ampararmos nosso estudo em tais teóricos, também definiremos os fragmentos essenciais que comprovem tal relação em Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos. Neste momento da pesquisa integraremos os apontamentos relativos à estrutura da narrativa juntamente com os aspectos que contribuem para a proposta aqui exposta a fim de confirmar a validade do trabalho para os estudos literários brasileiros da contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

ALVES, Luís Alberto. Elementar, meu caro Watson: notas sobre a representação artística do Golpe de 1964 em “A Grande Arte” de Rubem Fonseca. InComunidade, Portugal, v. 51, dez. 2016.  Disponível em < http://www.incomunidade.com/v51/art.php?art=263>
FILGUERAS, Luiz. Projeto político e modelo econômico neoliberal no Brasil: implantação, evolução, estrutura e dinâmica. Faculdade de Ciências Econômicas UFBa. 2006.
SANTIAGO, Silviano. A literatura brasileira pós 64 – Reflexões. In: Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.


VIDA, MORTE E PECADO ORIGINAL EM CLUBE DA LUTA E A PRAIA

 

Joacy Ghizzi Neto


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução
Orientadora: Prof. Drª Isabel Jasinski

Palavras-chave: A praia. Clube da luta. Comunidade. Pecado original.

Diante da celebrada crise das grandes narrativas, a comunidade tem constantemente se oferecido como uma alternativa política e estética enquanto forma de vida em comum. A disseminação de objetos estéticos, filmes, livros, quadrinhos, indissociados de experiências concretas dentro-fora da aldeia global, nos permitem investigar uma dialética da ruptura e da fundação; do indivíduo e do coletivo; do sujeito e da comunidade. O presente projeto de tese elege como objetos principais para tal análise os livros Clube da luta de Chuck Palahniuk e A praia de Alex Garland. Ambos publicados na virada do milênio, encenam rupturas e fundações de uma outra coletividade, seja identitária, seja territorial. Ao romper com o mundo, essas narrativas e personagens propõe uma virada que nos interessa aqui a partir dos seus desdobramentos estético-políticos, paradoxais e contraditórios. Um dos primeiros aspectos brevemente desenvolvidos nessa tese é em torno da comunidade angelical.
As opções de vinculação identitárias são diversas e tendem ao infinito. Porém, todas partem de um irredutível fundamento: o ao redor e os outros são desinsteressantes, quando não raramente desprezíveis. Mas o que nos promete esse Novo Mundo? Ou ainda, o que nos prometem aqueles que nomeiam o alheio enquanto decadente e oferecem(-se) uma mudança? Em A comunidade que vem, Giorgio Agamben nos alerta que “A tese segundo a qual o Absoluto é idêntico a este mundo não é uma novidade” e retoma uma parábola contada por Walter Benjamin a Ernst Bloch, na qual “Tudo será como é agora, só que um pouco diferente”. É esse paradoxo que a comunidade instaura - romper e conservar - que nos interessa explorar aqui.
Essa desvinculação radical diante do outro parece ter uma ligação incontornável com a morte. Nas narrativas abordadas, o fundador do Clube da Luta, Tyler Durden, termina suicidado; assim como um dos três cofundadores da Praia, Pato, exilado no mundo, também é um suicida. Dentro das comunidades, a morte também é uma questão, já que de alguma maneira interditada. Nem mesmo aqueles que morrem podem partir, afim de assegurar o segredo do lugar. Essa dimensão oculta e sagrada é um dos paradoxos que justamente funda o Clube da Luta. Cito o narrador: “Para Tyler, é melhor chamar a atenção de Deus por ser mau do que não ter nenhuma atenção por ser bom. Talvez o ódio de Deus seja melhor que a sua indiferença. Se você pudesse ser o pior inimigo de Deus ou não ser nada, o que escolheria? Somos os filhos do meio de Deus.” O narrador também nos sentencia que “Se você é homem, é cristão e vive na América, seu pai é seu modelo de Deus". Porém, já havia avisado ao leitores no início da narrativa que “O que você vê no Clube da Luta é uma geração de homens criados por mulheres.” Ou seja, estamos diante de uma geração, de um agrupamento de afinidades que é o compartilhamento da ausência absoluta. Sofrem daquele castigo terrível que Agamben recorda em Orígenes: “Nem a cólera, nem a misericórdia: o esquecimento, afirmara o teólogo, é o momento terrível.”
Sendo os filhos do meio, não atendidos pelo pai, seu ressentimento é análogo ao da pequena burguesia, base social histórica do fascismo. Agamben afirma então sobre o pequeno burguês “que a falta de sentido da sua existência se depara com uma última falta de sentido, onde naufraga toda a publicidade: a morte.” Assim, a morte é o vel que cobre aquele segredo que ele não poderia resignar na sua própria vida “não há nenhum abrigo na terra.” A ausência de abrigo na terra impele esses personagens à construção de algo celeste. Um lugar que fatalmente se tornará apenas território, reunião de espíritos elevados, de vidas exemplares. Porém, o espectro celestial já é o nosso próprio modelo de organização do poder na Terra.
Emanule Coccia percorre longa tradição teológica ocidental em “Os anjos” em busca da definição desses estranhos entes intermediários. A partir de um mosaico da fachada interna da Basílica de Nossa Senhora da Assunção de Torcello, nos atenta para o aspecto imperial das vestes e símbolos da figura dos anjos que guardam Cristo. Em seguida, nos alerta que a despeito da imagem gorducha e infantil promovida pela nova onda teológica, os pensadores antigos deixam manifesta a função de poder que os anjos exercem. Além de encenarem o poder, pois sua tarefa é servir Deus imitando-o ou agraciando-o de perto, como querubim ou serafim, organizam-se dentro de uma hierarquia. Essas constatações não são curiosidades intelectuais, nos adverte o filósofo. Cita um tratado do início do século XVII em que Charles de Loyseau afirma que é preciso organizar a sociedade “em graus subordinados ou subalternos, segundo o exemplo da hierarquia celeste [...] Não podemos viver juntos em igualdade de condições mas é preciso necessariamente que alguns comandem e outros obedeçam” Assim, para Coccia, a angeologia é o verdadeiro laboratório metafísico da elaboração do poder  no Ocidente.
É nesse sentido que as comunidades profanas, mesmo que desejantes do novo absoluto, e exatamente por essa razão, acabam por reproduzir com maior radicalidade as contradições e vícios que pretendiam romper ou abandonar. Em “Nomes de lugar: confim”, Maximo Cacciari discute a incontornável questão: que lugar habitar e permanecer. Diante dessa necessidade, Cacciari afirma que até mesmo “o nômade carrega consigo o próprio lugar, que é o tapete.” Ao negar e se negar ao contato-relação, os personagens em comunidade não deixam de reproduzir o funcionamento da sua imunidade (Roberto Esposito, Bios, 2010) formada alhures. A obsessão divina e celestial dos personagens do Clube, além da arrogância do turista superior, narrador da A praia, são elementos latentes dessa contradição.
Um dos sintomas mais evidentes da persistência daquilo que se pretendia combater, além da manutenção da centralização das decisões políticas e da divisão social rigorosa do trabalho, é o pecado original. No Clube, o outro par conflituoso do narrador, além do seu alter ego, é Marla Singer: “Tudo que sei é o seguinte: a arma, a anarquia e a explosão, isso tudo tem a ver com Marla Singer”. A personagem sobrevive da venda de roupas roubadas em lavanderias e da refeição para idosos já falecidos, que ela simula cuidar. Na Praia, após a chegada do trio Richard, personagem-narrador e seu casal de amigos, a lagoa era o mesmo paraíso até que Françoise sai do seu relacionamento com Ettiene para outro com Richard. Esse evento é nitidamente o ponto de desvio da narrativa em que o colapso do pacto comunitário entra em curso. Todavia, e configuração sexista do Clube e da imagem da decadência da Praia associada ao desvio da mulher não é o ponto de inflexão do projeto alternativo, é justamente o síntoma que explicita o fato dele não ser uma alternativa. Essa contradição primeira é o principal desdobramento em andamento, do atual projeto de pesquisa - O Clube, a Praia: configurações estético-políticas em torno da comunidade - a ser explorado no II Seminário de Teses e Dissertações em Andamento.


A PRESENÇA DA VIOLÊNCIA NOS CONTOS DE CUTI

 

José Luis Bubniak


Linha de pesquisa: Literatura, história e crítica
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado

Palavras-chave: Cuti, literatura negra, literatura afro-brasileira, violência

Ao falar de literatura negra ou afro-brasileira, a primeira questão que se coloca é se de fato existe uma literatura específica do segmento afrodescendente da população. Os que negam essa existência utilizarão argumentos como a universalidade da literatura, o predomínio dos elementos estéticos, defenderão que toda caracterização deve se referir aos territórios geográficos e/ou nacionais, e dirão que a cor da pele de quem escreve não pode ser critério suficiente para caracterizar uma produção literária. No entanto, chamar toda a literatura produzida no Brasil de Literatura Brasileira não dá conta de dizer qual é o motivo de a maioria dos escritores negros não ser conhecida do grande público, seus textos não fazerem parte dos currículos escolares e serem praticamente ignorados pelos críticos e historiadores literários tradicionais.
Chama atenção o fato de os primeiros trabalhos sobre a presença do negro na literatura brasileira terem partido de pesquisadores estrangeiros, como Roger Bastide, Raymond Sayers, Gregory Rabassa e David Brookshaw, e que apenas a partir do final dos anos 1970, período em que as manifestações deixaram de ser isoladas e ganharam um caráter coletivo, é que houve um fortalecimento dos estudos sobre a produção literária negra por parte de intelectuais brasileiros. A partir desse momento é que mais escritores conseguiram publicar suas obras e passaram a se definir como produtores de uma literatura negra ou afro-brasileira, e é quando se iniciou o crescimento do número de pesquisas, trabalhos e eventos acadêmicos a respeito da questão, o que aponta que essa literatura possui características específicas. Se assumimos que a particularidade existe, então devemos tentar descobrir em que a literatura negra é distinta da literatura brasileira em um sentido amplo.
Muitos autores discutiram o assunto, e não há um consenso em relação a como nomear essa produção. Uns preferem literatura negra, outros afro-brasileira, outro negro-brasileira e alguns parecem não se importar com a questão terminológica. As próprias características que lhe conferem uma particularidade levantam opiniões divergentes, o que demonstra a complexidade do debate. Para simplificar, podemos apontar algumas qualidades que boa parte dos autores assinala como fundamentais para a caracterização de uma literatura negra ou afro-brasileira: é a literatura produzida por um escritor negro, que utiliza como tema situações, vivências, memórias, sentimentos relacionados à população negra, adotando um ponto de vista valorativo, que foge aos estereótipos presentes em boa parte da literatura brasileira canônica.
Um autor bastante representativo dessa literatura é Cuti, pseudônimo de Luiz Silva, escritor nascido em Ourinhos-SP que atualmente reside em São Paulo. Formado em Letras pela Universidade de São Paulo, mestre em Teoria Literária e doutor em Literatura Brasileira pelo Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp, Cuti publicou livros de poesia, teatro, contos, ensaios, crítica literária, infanto-juvenis e é bastante reconhecido pela sua militância, sendo um dos criadores da série Cadernos negros e do grupo Quilombhoje, além de seu nome marcar presença em antologias de literatura negra e estudos sobre essa literatura e sobre a vida dos afro-brasileiros.
Na sua produção literária, na qual ele busca fazer um retrato das experiências vividas pelo negro, como o preconceito, a violência, a censura, a autocensura, as manifestações culturais, a opressão, o autor quer mostrar como o negro é encurralado pela sociedade e/ou mostrar situações e cenas vividas pela população afrodescendente. Segundo Fonseca et al.:

Nos contos e poemas que Cuti vem publicando desde o início de sua carreira, os problemas dos afrodescendentes são enfrentados de frente. Muitos dos seus contos focalizam situações vividas por aquelas pessoas que tem de enfrentar diariamente o preconceito e estereótipos que circulam na sociedade brasileira. (2006, p. 122)

O que procuramos observar é como a violência se manifesta nos contos do autor, publicados nos livros Quizila, Negros em contos e Contos Crespos. Se Schwarcz e Starling (2015) colocam a herança escravocrata como responsável pelo espalhamento e naturalização da violência no Brasil, dizendo que no Brasil moderno a experiência de violência e dor se repõe, resiste e se dispersa em inúmeras formas de manifestação, muitos dos contos de Cuti abordam esse “longo day after da abolição” (DUARTE, 2008, p. 14) que se estende até os dias de hoje.
Em muitos dos textos, o negro é apresentado como oprimido, ofendido, humilhado, associado sem provas com a criminalidade, numa atitude de denúncia. São apresentadas tensões de negros com parceiros, familiares, desconhecidos, vendedores e tantos outros, com destaque ao embate com policiais. A violência contra o negro aparece na dificuldade em provar inocência, nas ofensas, na exclusão e nos assassinatos, muitas vezes mostrando a banalização da vida. Vemos atos de violência física e psicológica, que parecem já esperados por quem sofre, como quem tem consciência das dificuldades que devem ser diariamente enfrentadas.
Mas não é apenas a violência que o negro sofre que aparece nos contos de Cuti. Outros textos trazem a utilização da violência como forma de reação ou resistência, pensando a resistência como algo cujo “sentido mais profundo apela para a força de vontade que resiste a outra força, exterior ao sujeito. Resistir é opor força própria à força alheia” (BOSI, 2002, p. 118). Nesses textos há uma revisão de personalidades históricas e críticas às incompletudes de medidas como a abolição da escravatura, que longe de resolver os problemas dos afrodescendentes, acabou condenando-os a situações de marginalização que perduram até hoje. Os contos também demonstram circunstâncias em que a ofensa é respondida com ofensa, e a violência com mais violência, sem que isso signifique uma defesa ou justificativa da brutalidade. A intenção parece ser demonstrar a força de resistência negra e a reivindicação de igualdade racial.
Cuti, enfim, é um autor preocupado em representar a situação vivida pelo negro brasileiro, num país em que “formas de discriminação são sustentadas por uma cultura que estabelece padrões sobre o valor das pessoas pela raça” (TELLES, 2012, p. 140). O autor enxerga o negro como um ser oprimido numa sociedade racista, e demonstra isso em seus textos. Mostra como a autoridade policial, representando o Estado e que deveria garantir o direito à cidadania de todos, age com o negro de forma preconceituosa, considerando-o um suspeito em potencial, o que reflete uma realidade na qual a cor da pele pode ser o motivo para ser preso, intimidado, humilhado ou ter a vida liquidada. Numa sociedade violenta, a literatura traz a marca e a denúncia da violência. Mas traz também a resistência e a revolta do negro, revolta que, segundo Abdias do Nascimento, invoca “seu valor de Homem, seu valor de Negro, seu valor de cidadão brasileiro” (1968, p. 45), e faz com que sua humanidade, que deveria ser evidente, seja exposta.


LOS ENCUENTROS ENTRE ROSA E RULFO: A RELAÇÃO ENTRE SUJEITO E NATUREZA NA LITERATURA LATINO-AMERICANA

 

Larissa Walter Tavares de Aguiar


Linha de pesquisa: Alteridade, mobilidade e tradução.
Orientador: Prof. Dr. Paulo Astor Soethe

Palavras-chave: Guimarães Rosa; Juan Rulfo; Identidade; Sujeito/Natureza.

A presente pesquisa visa estudar as relações entre personagens e espaço, ou seja, entre Sujeito e Natureza, nas obras do escritor brasileiro João Guimarães Rosa e do escritor mexicano Juan Rulfo, objetivando, além de traçar um paralelo entre suas produções, mostrar a internacionalidade desses autores e como ambos constituem matrizes para a composição do cenário artístico e da identidade da América Latina.
Existem vários pontos de contatos entre as obras destes autores, desde aspectos temáticos, formais quanto ao que se refere ao modo de encarar a criação artística. Referente a este aspecto são válidas as considerações feitas por Arguedas em seus diários publicados em El zorro de arriba y el zorro de abajo (1971), que mostra algumas de suas reflexões. Nesse diário, o escritor comenta sobre o panorama da literatura latinoamericana de sua época e separa os escritores mais consagrados pela crítica em profissionais e não-profissionais, que ele intitula como escritores provinciais:

Yo no soy escritor profesional, Juan no es escritor profesional, ese García Márquez no es escritor profesional. ¡No es profesión escribir novelas y poesías! O yo, con experiencia nacional, que en ciertos resquicios sigue siendo provincial, entiendo provincialmente el sentido de esta palabra oficio como una técnica que se ha aprendido y se ejerce específicamente, orondamente para ganar plata. Soy en ese sentido un escritor provincial; sí, mi admirado Cortázar; y, errado o no, así entendí que era don João y que es don Juan Rulfo. Porque de no, Juan, que conoce al infinito el oficio, no debería ser pobre. Yo tuve que estudiar etnología como profesión; el Embajador fue médico; Juan se quedó en empleado. Escribimos por amor, por goce y por necesidad, no por oficio. Eso de planear una novela pensando en que con su venta ha de ganar honorarios, me parece cosa de gente muy metida en las especializaciones. Yo vivo para escribir, y creo que hay que vivir desincondicionalmente para interpretar el caos y el orden (ARGUEDAS, 1996, p. 18)

Assim, o autor peruano coloca no mesmo patamar entre outros escritores, Juan Rulfo e João Guimarães Rosa, em distinção a outros como Julio Cortázar, por exemplo. Esse primeiro grupo ele destaca que não são profissionais, não escrevem visando a venda e para obter lucro, não vivem exclusivamente da venda de seus livros: “Yo tuve que estudiar etnología como profesión, el Embajador fue médico; Juan se quedó en empleado”, cada um tinha um ofício paralelo que não era intimamente ligado com a produção literária: “Escribimos por amor, por goce y por necesidad, no por oficio”. Arguedas destaca que ele e esses escritores provinciais, vivem para escrever, mas não escrevem para viver, e fazem isso “para interpretar el caos y el orden”.
Dessa forma, visa-se refletir sobre o modo como se estabelece a construção do indivíduo por meio da sua relação com o espaço que habita, característica presente nos romances latino-americanos da segunda metade do século XX que, como explica Bella Jozef em seu livro O romance hispano-americano (1986), “deram nova feição ao regionalismo, e trouxe equilíbrio entre homem e paisagem. O romance atual sabe, em troca, que o homem existe, ‘rodeado por uma sociedade, imerso em uma sociedade’” (p. 66-7).
Essa consciência de estar rodeado e imerso em uma sociedade é bem marcada nos textos de Rulfo e Rosa, tanto no espaço em que se passam as histórias, como na própria linguagem utilizada nas obras. Juan Rulfo descreve o interior do México, pautado fortemente pelas experiências vivenciadas em Jalisco e em San Gabriel, povoado no qual cresceu. Rulfo representa o mexicano do interior, que muitas vezes tem seu destino e sua vida atrelada aos caprichos ou desmandos dos terratenientes, sendo estes os caudilhos que dominam os povoados usando violência. Para representar essa realidade Rulfo se atenta para a relação mútua presente entre o espaço e o sujeito. O que se destaca nessa relação em Rulfo, é que o espaço atua como uma continuação da personagem.
Abordagem semelhante a esta associação entre os indivíduos e o espaço se destaca na literatura de Guimarães Rosa, o qual é intimamente vinculado ao sertão mineiro, vindo dessas vivências algumas marcas de sua produção. Suas personagens comumente representam o sertanejo simples, que vê o ambiente natural como uma extensão de si mesmo, de modo que sua relação com o espaço natural seja indissociável, a estudiosa Mônica Meyer, em Ser-tão Natureza (2008), atenta para essa comunhão:

A visão que Guimarães Rosa tem dos elementos naturais abre a possibilidade de se olhar o humano integrado à natureza; [...] os elementos se misturam numa comunhão religiosa – todos os seres vivos comungam o mesmo chão, ar e água do sertão e se envolvem através de uma religiosidade traduzida pela irmandade com o universo, que possibilita encontrar os fios que tecem a mesma teia da vida (MEYER, 2008 p. 128)

Assim, tanto Rulfo, com a linguagem dos povoados mexicanos, quanto Rosa, com a linguagem sertaneja, trazem para a literatura uma marca muito forte da América Latina: a cultura típica de lugares interioranos, que é utilizada para rememorar mitos tradicionais e compreender melhor a essência destes povos. Essa rememoração não se dá no aspecto saudosista, como forma de manter tradições, ao contrário, os mitos são recriados, rediscutidos e ampliados, como destaca Bella Jozef, no livro anteriormente citado:
A narrativa cria uma linguagem própria, formada, em primeiro lugar, pela reestruturação de mitos já existentes no contexto hispano-americano. Trata-se da recuperação do sentido da realidade e o desejo de fundar um universo pela palavra que remete às estruturas originais do mito. O mito é considerado síntese do mundo conhecido.
No romance hispano-americano, passou a ser considerado o próprio ‘real’ em suas perspectivas possíveis. Ele funciona como elemento engendrador de uma visão nova do universo ficcional, criando outro território em que pode desenvolver-se a imaginação e a fantasia (JOZEF, 1986, p. 68)

Esse novo território extrapola as barreiras do regional e culmina em discussões e reflexões de caráter universal, isso porque o que é retratado nas obras desses escritores tem sim o molde regionalista, por haver cenários, linguagens e descrições marcadamente regionais, todavia, para além desses aspectos, há a as relações, que são humanas, e não regionais.
Assim, esta pesquisa focaliza as interações personagem/espaço natural e o modo como estas são estabelecidas, nas obras de Juan Rulfo e Guimarães Rosa visando estabelecer uma relação comparatista entre os autores. Esta abordagem analítica também visará levar em consideração em que medida a linguagem e as representações míticas tradicionais auxiliam na aproximação entre o indivíduo e o espaço natural, assim como na formação da identidade latino-americana. Dessa forma, tem-se o objetivo de contribuir para os estudos literários, em destaque para os estudos de literatura comparada e latino-americana, bem como para a fortuna crítica desses dois autores visando a abertura de abordagens para futuros estudos da área.

ARGENTUM CÓRDOBA: COMO CRISTINA BAJO, MARÍA TERESA ANDRUETTO E ANDRÉS RIVERA (RE)ESCREVEM A(S) MEMÓRIA(S) DE UM PAÍS FORJADO NOS LIMITES DA FICÇÃO E DA HISTÓRIA.

 

Phelipe de Lima Cerdeira


Linha de pesquisa: Literatura, História e Crítica
Orientador: Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado (UFPR)
Co-orientadora: Dra. Liliana Eva Tozzi (UNC – Argentina)
Debatedor: Dra. Marilene Weinhardt (UFPR)

Palavras-chave: Teoria literária. Ficção histórica. Literatura argentina. Cristina Bajo. Andrés Rivera. María Teresa Andruetto.

A hegemônica entrada nos estudos literários argentinos, vislumbrada a partir de pilares estáticos, acaba não privilegiando um exame mais atento de diversos críticos latino-americanos sobre a enunciação alocada no interior do país. Calcada por uma visão central, forjada em Buenos Aires, entendemos ser possível deslocar a canônica manifestação literária em nome de uma literatura menor (DELEUZE, 1975), que seja capaz de perceber o florescimento das artes – sobretudo da expressão da literatura que flerta com o discurso histórico – desde a perspectiva que percebe a província de Córdoba como um pujante e histórico epicentro cultural. Não se trata de uma construção discursiva (ex)cêntrica, tal como já alertado por Linda Hutcheon (1992), ou, ainda, uma proposta limitada (e limitante) do que se pode denominar literatura argentina. Tampouco se almeja com tal estudo ressignificar dualidades perigosas advindas desde o projeto moderno sarmientino para construir o que se chama Argentina, não considerando que o que divide civilização e barbárie é sempre uma tênue perspectiva.
O que se quer, portanto, é alçar Córdoba como uma metonímia possível (dentre tantas outras) para se pensar a respeito da enunciação que vem do interior de maneira geral, elegendo tal espaço enunciativo como uma exemplificação do que Pierre Bordieu (1990) intitula como “campo literário” ou “campo intelectual”. De Luis de Tejeda no século XVI à explosão editorial de autoras conhecidas por seus romances históricos, Córdoba coleciona uma relevante produção no universo das letras argentinas, o que despertou o incômodo desse pesquisador e o leva a crer que um trabalho desafiador pode revelar, senão única, uma distinta Argentina. A futura tese, assim, tem como objetivo geral tomar a produção de ficção histórica contemporânea de três escritores – Cristina Bajo, Andrés Rivera e María Teresa Andruetto – que enunciam a partir de Córdoba, com propostas de projetos poéticos específicos e viáveis quando se pensa na manifestação de tal modalidade narrativa.
Buscar-se-á ilustrar o quanto essa província demonstra ter fôlego suficiente para ajudar na hipótese de que a ficção histórica amalgamada no interior assume representatividade e personalidade (GIUFFRÉ, 1994) ao promover a (re)escrita da memória desse país nascido desde o começo de costas para o seu passado, embora pareça estar sempre sedento por buscar novas chances de futuro. Ao erigir Argentum Córdoba como argumento central desta tese, tentar-se-á criar um novo cronotopo capaz de investigar a ficção histórica argentina e, de certa maneira, a sistemática de se incidir na esfera teórica para se pensar a própria literatura do país do Prata. Tal como imaginado, diante de tamanho desafio, será necessário cumprir com alguns objetivos específicos, dentro os quais, o de realizar uma panorâmica dentro da historiografia literária capaz de validar o quanto Córdoba sempre se comportou como um importante centro cultural para o desenvolvimento intelectual e para a reflexão sobre a identidade e memória argentinas; fundamentar como a Argentina parece protagonizar grandes realizações de ficção histórica ao longo de sua historiografia literária e como estas narrativas, por sua vez, encontraram no interior do país um palco estratégico para o seu desenvolvimento e proliferação; promover uma leitura atenta e apurada quanto às especificidades de Cristina Bajo, María Teresa Andruetto e Andrés Rivera para elaborar, ficcionalmente, a memória e a história argentina; e, por fim, o de realizar entrevistas pontuais com as duas autoras ainda vivas (Bajo e Andruetto), procurando entender como cada uma se percebe enquanto elo dessa modalidade narrativa que promove o diálogo entre ficção e história, o tensionamento que é entendido como Argentum Córdoba.
O recorte das obras literárias estará baseado na leitura e análise de um total de nove romances diferentes, sendo estes: cinco romances de Cristina Bajo (a pentalogia que constrói a chamada Saga de los Osorio, contando com os romances Como vivido cien veces, 2006, En tempos de Laura Osorio, 2007, La trama del pasado, 2009, Territorio de penumbras, 2011, e Esa lejana barbarie, com previsão de lançamento no final do primeiro semestre de 2017); três romances de María Teresa Andruetto (Tama, 2008, Lengua madre, 2010, e Los Manchados, 2015) e um título de Andrés Rivera (La revolución es un sueño eterno, 1992). A seleção dos escritores e obras cumpre com a perspectiva de englobar as três principais erupções coletivas protagonizadas no país desde o século XIX até a contemporaneidade – Revolução de Maio, Guerras Civis e Ditadura Militar de 1970 –, alocando em tal tríade o esforço do plano ficcional para dar voz ao silêncio sistemático exercido diante dos vencidos.
É justamente para validar a hipótese de Córdoba como outro epicentro enunciativo para investigar a ficção histórica que insistimos no recorte baseado em Cristina Bajo, María Teresa Andruetto e Andrés Rivera, três autores contemporâneos que, a partir de diferentes maneiras para elaborar o discurso literário, apresentam entradas ficcionais como (re)leituras da história e da(s) memória(s) argentinas. Nosso compromisso, aliás, vai além de uma leitura circunscrita ao ambiente das obras, ou seja, a literatura argentina, reiterando, em alguma medida, os esforços de críticos e escritores que, desde o século XIX e, principalmente, nas últimas duas décadas do século XX, parecem dedicar-se ao estudo e à compreensão da importância e dos desdobramentos da ficção histórica. Serão, portanto, fundamentais os aportes de nomes como os de Celia Fernández Prieto (1998), Seymour Menton (1993), Amalia Pulgarín (1995), Antonio Roberto Esteves (2008) e Marilene Weinhardt (2006). Por outra parte, Carlos Altamirano (1997), Beatriz Sarlo (1997, 2010), Ezequiel Martínez Estrada (1933, 2008), Elsa Drucaroff (2011) e Ricardo Piglia (2007) serão fulcrais para se entender a manifestação e os movimentos tomados pela teoria literária argentina, validando os movimentos centrípetos em torno de Buenos Aires, por exemplo.
 De fato, ainda que de maneiras distintas, Bajo, Andruetto e Rivera estabelecem diálogo franco com a proposta de (re)escrever e (re)pensar não somente o que foi cimentado pelo discurso histórico, mas o que se deve ao próprio plano literário, fazendo com que cada uma de suas obras tenha uma arquitetura discursiva muito mais complexa do que a de simples recordações individuais e ficcionais, aludindo aqui à diferenciação entre memória e recordações realizada por Aleida Assmann (2011). Se as memórias consagram o nível coletivo, nas obras selecionadas para o nosso recorte, estas ainda adquirem a propriedade de versar sobre a história argentina a partir da perspectiva da interioridade, de Córdoba.
Em Lengua madre, Andruetto favorece a ideia de que a memória se estabelece como uma espécie de força organizadora do próprio presente. A temática do manuscrito, cara para a formulação da ficção histórica, é retomada pela escritora de maneira não usual, buscando na rememoração de cartas a construção do passado e a consequente reavaliação do hoje e do amanhã. A partir de cartas reunidas em três gerações – em uma construção do enredo não linear –, o romance Lengua Madre dá dimensão à história argentina a partir de eventos comuns e registros das transformações vivenciadas pela sociedade, sobretudo na década de 70. Do congelamento à distribuição de bens alimentares para o povo, de grandes lojas em atividade até mesmo a felicidade de famílias de classe média por conta de pequenas vitórias encontradas em seus lares, cada detalhe valoriza a busca de novos índices históricos a partir da memória coletiva e do que se entende como história oral e cultural: “A propósito de casita, está quedando hermosa, más de lo que creíamos, en la cocina vamos a poner azulejos decorados en celeste y piletas de acero inoxidable, ¡un sueño!” (ANDRUETTO, 2013, p. 18, grifos da autora). Quanto à escolha por também ler Tama e Los Manchados busca demonstrar um projeto de ficção histórica baseado na metaliteratura, na consciência do escrever como método e processo de reconstrução e de transformação de múltiplos textos e saídas.
Já em La revolución es un sueño eterno, os meandros da memória passam a dar a sustentação literária para um narrador autodiegético, com retórica ácida e precisa: é o personagem histórico Juan José Castelli, orador da Revolução de Maio de 1810 e, portanto, figura balizar da história argentina, que se apresenta aos leitores-jurados como um réu. À beira da morte, com base na confissão dilacerada do narrador, Rivera alcança em seu romance uma reavaliação da história a partir da quebra de imagens míticas, misturando dor e prazer pelo narrar: “Escribo: un tumor me pudre la lengua. Y el tumor que la pudre me asesina con la perversa lentitud de un verdugo de pesadilla.” (RIVERA, 2012, p. 13).
Por último, aludindo à escritora que é reconhecida por seu projeto fundacional de memória, Cristina Bajo plasma ao longo de cada um dos romances da Saga dos Osorio pequenos recortes das memórias de seus personagens, em uma espécie de mosaico para a formação de outros possíveis discursos da história. Dialogando com a fórmula tradicional luckásiana de se escrever romances históricos, Bajo constrói uma grande rede de significação em torno de sua narrativa, graças a um monumental trabalho de reconstituição histórica em nome do fôlego romanesco. Como registro literário na poética bajoniana, a partir de uma fala presente no romance Como vivido cien veces, ganhamos mais uma consigna e razão fundamental para a realização desse trabalho: “(…) Porque es preciso no olvidar, doña Luz. Los pueblos de mala memoria están destinados a la ignominia…” (BAJO, 2006, p. 277).
Para fundamentar o desenvolvimento da futura tese, estabelece-se uma metodologia de pesquisa bibliográfica, com o suporte de leituras críticas voltadas aos trabalhos dos escritores Cristina Bajo, María Teresa Andruetto e Andrés Rivera; dados da história e da memória argentina a partir da perspectiva de Córdoba; imersão nas questões teóricas da literatura hispano-americana e dos tópicos a respeito da ficção histórica enquanto modalidade narrativa; busca de materiais, obras, jornais, revistas e outros instrumentos históricos que possibilitem fazer o reconhecimento, o cruzamento e a comparação com os dados ficcionais, além das conexões necessárias para uma análise dialógica das obras; averiguação das curiosidades a partir de ferramentas como as redes sociais, portais na internet e revistas eletrônicas; e, por último, a eventual aproximação às autoras vivas para uma entrevista.
Pela profundidade e possibilidade das narrativas de Bajo, Andruetto e Rivera, é possível adiantar que suas obras assumem importância para aqueles que buscam, não somente no plano literário, mais informações e dados para a compreensão da história argentina, de suas memórias e do processo identitário que envolve o país. Um novo capítulo para ensaiar e para demonstrar a relevância de um país forjado entre os limites da história e da ficção. Um país feito também de e por Argentum Córdoba.


CRÍTICA E TEORIA LITERÁRIA NO SÉCULO DE OURO ESPANHOL: A RETOMADA DA LITERATURA CLÁSSICA E A TEORIZAÇÃO SOBRE O GÊNERO ÉPICO NAS POÉTICAS E UM ESTUDO SOBRE A ÉPICA DE LOPE DE VEGA

 

Wagner Monteiro Pereira


Linha de pesquisa: Literatura, história e crítica
Orientador: Prof. Dr. Rodrigo Vasconcelos Machado
Debatedor: Prof. Dr. Rodrigo Tadeu Gonçalves

Palavras-chave: literatura espanhola; crítica literária; Lope de Vega

Nos Séculos XVI e XVII, a Antiguidade e a Modernidade pareciam confrontar-se. A literatura greco-latina voltava a ganhar força entre os intelectuais, mas seu verdadeiro sentido de renovação e liberdade, começado por Petrarca e encerrado por Enrique Stéfano dava lugar a um ideal de imitação e recriação da própria Antiguidade. Se era preciso imitar e transpor essa época para o XVI e o XVII, também se fazia necessário uma regulamentação, papel ocupado pelas novas artes poéticas que surgiam. Para Russell Sebold (1970), as artes poéticas tiveram nesses séculos o papel que as análises do processo criativo ocuparam principalmente no século XIX, embora como afirma o hispanista norte-americano, os românticos tenham predicado a ideia de uma poesia pautada apenas na inspiração, na contramão da ideia horaciana de natureza e arte, em outras palavras, inspiração e razão.
Na Espanha, foram várias as Poéticas que teorizaram sobre diversos gêneros literários. Para essas Poéticas, a evolução do gosto estético tinha de seguir os critérios de uma normatização atemporal. Se em um primeiro momento elas estavam centradas na poesia lírica (na contramão da Poética de Aristóteles), logo começaram a abarcar outros gêneros, como o drama, a novela – que engatinhava – e a poesia épica. Com influência primordialmente classicista, esses textos tiveram um caráter prescritivo, que acarretaram uma crise. Essa tradição preceptora, que gerou uma imagem ruim sobre a crítica dos gêneros literários até os dias de hoje, também suscitou problemas principalmente no século XVII. Não em vão Lope de Vega percebeu a necessidade de explicar sua forma de fazer comédias com El arte nuevo de hacer comedias en este tiempo e foi criticado por suas inovações ao gênero épico que se distanciavam daquilo que a Arte poética de Aristóteles preconizava. Como afirma Stephen Miller (1994), a teoria de Aristóteles sobre os gêneros tinha como objetivo descrever, não preconizar. Em outras palavras, a Poética demonstra o que os gêneros poderiam ser, não o que deveriam: “The rightful function of the theoretician is, as it was for Aristotle in his Poetics, to describe the literary genres, not to dictate to writers an inventory of approved forms through which to express their ideas and images.” (MILLER, 1994, p. 297).
Na mesma linha de Miller, Jean-Marie Schaeffer (1989) também vê como há um contrassenso naquilo que ele denomina literatura pré-romântica e que compreende os séculos XVI e XVII, pois os textos idealizados pelos autores greco-latinos pensando na literatura que estava por vir eram usados na Idade Moderna a partir de uma concepção descritivo-normativista e pensados, portanto, para dar um juízo de valor a obras coetâneas ou anteriores.
As leituras nos séculos XVI e XVII das poéticas antigas, em especial da de Aristóteles e Horácio, criaram uma preceptiva rígida e dogmatizaram, pois, os gêneros literários. Se as artes poéticas mantinham um claro ideal de ordenação, elas acabaram por reduzir textos mais ousados e singulares a padrões de alcance universal de cada gênero. Desviar do caminho canônico não era bem avaliado e escritores que o faziam sofriam a sanção de preceptores e de outros eruditos que pertenciam às Academias literárias da época.
Imitar era, pois, o caminho. No século XVI vigorou durante muito tempo aquilo que a teoria literária denomina Doctrina de la Imitatio auctores. Veremos que esse pensamento propalava a imitação dos modelos clássicos na composição poética e influenciou, primeiramente, aquilo que se alcunha comentadores da obra de Garcilaso de la Vega, maior poeta espanhol renascentista. Outrossim, essa doutrina teve ecos também nas artes poéticas produzidas nesse século e no século subsequente e influenciou o pensamento de diversos intelectuais. A ideia central era a de que nada era maior que Homero e Virgílio e que para que se pudesse ao menos se aproximar dos grandes clássicos, dever-se-ia tentar imitá-los, levando em conta sempre, é claro, os preceitos horacianos e aristotélicos.
Propor-nos-emos a refletir e analisar as leituras dos textos clássicos, especialmente a Arte poética, de Aristóteles, feita pelos eruditos espanhóis e como o texto aristotélico foi interpretado de diferentes formas, o que proporcionou o aparecimento de artes poéticas normativas com diferentes pontos de vista, ainda que com a mesma base. Isso se traduz principalmente no conceito de mímese, um dos pontos centrais do texto de Aristóteles, mas interpretado de diferentes formas por autores como Alonso López Pinciano e Francisco Cascales.
Como afirma Luiz Costa Lima, em História. Ficção. Literatura (2011), o legado da Antiguidade clássica nos estudos literários sempre foi grande – e continua sendo até a atualidade –, e influenciou toda o pensamento teórico da Idade Moderna. No entanto, segundo Costa Lima, converter a mimese aristotélica em uma doutrina, uma regra de como os autores deveriam proceder, teve péssimas consequências na interpretação literária. Para o autor, no entanto, essa postura está conforme com a ideologia cristã, que crê em um Deus onipotente, que acredita que a “poiesis humana só poderia repetir o que já fora feito pelo divino. Em sua acepção clássica, a Retórica, sistematizada por um Quintiliano (...) seria aceitável ao olhar do teólogo, pois a inventio de que tratava se restringia ao plano da expressão verbal” (LIMA, 2011, p. 211).
Para Mike Abrams, a teoria literária passou por diversas fases, sendo a primeira delas a fase mimética, através do legado, como expusemos acima, da Antiguidade clássica. De acordo com Abrams (1975), essa fase concede um lugar fundamental à relação da obra de arte com a realidade – ou o universo em suas palavras e só foi interrompida a partir do Romantismo e do surgimento de teorias de caráter pragmático – focada estritamente na reação do público a uma obra; expressivo – que enfatiza o papel do artista como criador da obra; e objetivo – que dá maior importância a obra em si e não foca nas referências exteriores a ela.
Com as prescrições e sua influência clássica, veio ao mesmo tempo a necessidade de teorizar sobre os gêneros literários produzidos no Século de Ouro. A poesia lírica, a comédia e a tragédia receberam mais atenção dos autores à época principalmente pelo fato de terem uma produção grande. No entanto, também se teorizou sobre a épica culta, gênero que ainda tinha lugar nos séculos XVI e XVII em grande medida por se enquadrar perfeitamente no ideal nacionalista e expansionista que a Coroa espanhola – Os Austrias (1517 – 1700) mantinha.
Tentaremos nessa tese responder as seguintes questões: como se deu a leitura dos textos clássicos no Século de Ouro e de que forma isso influenciou na teorização sobre a épica? Para tal, faz-se necessário uma catalogação dos principais textos que teorizaram sobre esse gênero para só então analisar se há uma homogeneidade em seu pensamento. Levaremos em conta teorias poéticas, alguns prólogos de épicas e discursos lidos nas Academias Espanholas no período entre 1550 e 1650.
O eixo central desta tese serão os trabalhos de fôlego de López Pinciano e Francisco Cascales. Ao mesmo tempo serão levados em conta outros textos para compreender o diálogo que estes mantem com seus contemporâneos. Outrossim, analisaremos se a má recepção de alguns autores se deu pela utilização da Poética e da Retórica como manuais de crítica literária com conceitos atemporais, pois esses textos foram usados a partir de fixações sincrônicas o que facilmente fazia com que os textos se ajustassem a essas normativas.
A partir do momento que o sistema clássico não consegue absorver a multiplicidade de gêneros que começam a aparecer em uma época com circunstâncias históricas totalmente diferentes das da Antiguidade Clássica, ele se mostra insuficiente, principalmente em momentos nos quais a literatura conta com autores mais criativos, que tentam reformular o cânone. Em tais momentos, mais que uma preceptiva neoclássica, mostrar-se-ia mais eficaz uma teoria focada na diferenciação.



[1] Tem-se notícia de apenas uma edição em livro de Desnos no Brasil: Liberdade ou Amor , trad. De Eclair de Antonio Almeida Filho e Odúlia Campelo. Florianópolis: Edições Nephelibata, 2015.

[2] O que Raymond Queneau e seus colegas sistematizariam e radicalizariam no Oulipo , espécie de desdobramento desta vertente.
[3] “A paronomásia, figura central da poética, como quer Jakobson, é o instrumento básico do curto-circuito operacional, sob a forma de aliterações, rimas, homofonias, trocadilhos” (CAMPOS apud RENNÓ, 1991: 31)
[4] “Evidentemente, a poesia concreta repudia o irracionalismo surrealista (...)”, CAMPOS et al., 2006: 142.
[5] Refiro-me ao artigo “Poesia: uma frágil vítima da escola”. In: LAJOLO, M. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993, p. 41.
[6] No ensaio “Inutensílio”, o poeta brinca com o trocadilho entre inútil e in-útil, no sentido de que a poesia estaria além da utilidade mundana que damos aos objetos, pois a poesia seria como o gol, o prazer, o convívio, o amor, que “não precisam de justificativa, são a própria finalidade da vida”.
[7] O Instituto de Cooperación Iberoamericana, do estado espanhol, iniciou o processo de publicação das Obras Completas da autora sob a direção de Miguel Ángel Fernández, mas esse projeto foi interrompido por falta de recursos, sem nunca chegar a ser concluído. Atualmente existem quatro volumes de Obras Completas de Josefina Plá, mas essa coleção não chega a recompilar nem mesmo a totalidade de seus textos éditos mais conhecidos.
[8] MUZART, Zahidé Lupiaacci. A Questão do Cânone. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/download/5277/4657. Acesso em 21 de abril de 2017
MUZART, Zahidé Lupiaacci. A questão do cânone. Disponível em <https://periodicos.ufsc.br/index.php/literatura/article/download/5277/4657> Acesso em: 20/04/2017.
[9] O projeto neoliberal conforme explicitado por Luiz Filgueiras (2006) é “a forma como, concretamente, o neoliberalismo se expressou num programa político-econômico específico no Brasil, como resultado das disputas entre as distintas frações de classes da burguesia, e entre estas e as classes trabalhadoras.” (p. 01)
[10] Termo cunhado por Silviano Santiago ao se referir à abertura temática das produções literárias em 1970 e 1980: “A anarquia formal não deve ser tomada, a priori, como um dado negativo na avaliação da literatura em prosa de agora. Pelo contrário. Demonstra a vivacidade do gênero, capaz de renascer das próprias cinzas.” (SANTIAGO, 2002, p. 29)